São Paulo – É de uma neta de libaneses de Baalbek e Kafarakab uma das propostas artísticas que vem ganhando cada vez mais trânsito na cena nobre da arte contemporânea brasileira. Denise Milan, terceira geração dos Maluf e dos Milan no Brasil, faz arte com pedras e por meio delas conversa com o público sobre sobrevivência, coexistência, humanidade, e até mesmo sobre a travessia que seus avós fizeram das terras libanesas até as brasileiras no século 19.
“Sobreviver ou desaparecer era também o drama desses navegantes, desses migrantes. Eles iam desaparecer nessa outra terra ou eles iam sobreviver?”, disse Denise em entrevista à ANBA, ao lado da sua instalação na 33ª Bienal de Artes de São Paulo. O evento é maior de arte contemporânea da América Latina e nele Denise Milan ganhou um espaço individual, algo que só aconteceu com 12 artistas indicados. Ali é lugar privilegiado.
Na instalação de Denise Milan na Bienal, diversas pedras estão espalhadas pelo chão, lembrando figuras humanas, lembrando falos, lembrando mulheres com véus, lembrando mãos clamando ao céu ou outro elemento que a imaginação do visitante queira. Uma das pedras na vertical, aberta, deixa o violeta da ametista interna à mostra e marca o início de um grande conglomerado de pedras ao chão que se assemelha a um rio ou mesmo ao rastro da passagem de um meteorito – ou à Ilha Brasilis, nome da instalação.
O texto de abertura da exposição, que fica no começo do salão, dá o pensamento da artista sobre sua obra: “Eu fui olhando as pedras cada vez mais como seres humanos, porque elas tinham formas humanas. E quanto mais fui olhando para isso, para sua narrativa, mais elas foram me contando. Fui encontrando testemunhos da analogia entre o ser humano e a pedra, e do quanto, no fundo, a gente foi imaginado pela Terra”, diz texto de Denise sobre a obra.
As instalações de Denise no Brasil e mundo afora são derivações do tema da pedra em suas mais profundas possibilidades de reflexão e exploração. Denise tem obras permanentes no Jardim das Esculturas do Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, no Pelourinho, em Salvador, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, no Museum Campus, em Chicago, e outros locais, além de uma lista longa de exposições em lugares como Nova York, nos Estados Unidos, Hannover, na Alemanha, Assis, na Itália, entre outros no Brasil e exterior.
A pedra é sempre o âmago para discutir a humanidade. “Estamos aqui perante pedras de 130 milhões de anos, que sobreviveram aos maiores embates da matéria, elas persistem, conseguem criar a sua integridade e a sua individualidade. Que mistério é esse que faz sobreviver?”, afirma Denise. A artista busca na profundeza da terra o seu material de trabalho e as suas reflexões. A convivência do basalto e do quartzo com a ametista falam para Denise sobre coexistência. “Descobri a noção de coexistência pelo drama da matéria”, diz.
O curador da Bienal, Gabriel Pérez-Barreiro, trouxe esse tipo de olhar para a mostra ao escolher o trabalho de Denise para projeto individual. “Não estamos acostumados a ver pedras num contexto de arte, a gente vê num contexto de joalheria, de souvenir, de coisas muito do mundo do consumo. A Denise coloca a pedra num outro lugar, como uma fonte de ensino, de experiência, como uma fonte de conexão com a realidade que está embaixo de nossos pés, que está nos segurando o tempo todo, mas a gente não pensa nela”, disse Pérez-Barreiro.
Costurando as linhas da própria história, a artista foi percebendo que o seu trabalho estava bastante ligado às origens árabes. A arte de Denise se debruça sobre a família ao indagar sobrevivência, que foi o que os primeiros imigrantes árabes buscaram no Brasil, e foi alimentada por pequenos detalhes de uma vida familiar calorosa. A caixinha de pedras que ela ganhou do pai na infância, as histórias de uma revista egípcia que o avô lia, e a residência de arquitetura mourisca dos avós com suas pedras ficaram no imaginário dela.
“Eles vieram para a América e eu, além de entrar na América, eu adentrei nos subterrâneos da América e descobri os seus tesouros. Trago os tesouros para o mundo da visibilidade, é como se fossem os tesouros escondidos na caverna do Ali Babá”, brinca Denise, fazendo uma analogia entre sua história pessoal e o personagem da obra As Mil e Uma Noites.
Convidada por filósofos da Universidade Notre Dame, do Líbano, Denise Milan viajou para o país há cerca de cinco anos para fazer uma palestra. “Mexeu profundamente comigo”, afirma. A brasileira conta que todos falavam em árabe com ela e ficavam surpresos de ela não responder, já que não fala o idioma. “Mas foi muito lindo porque eu podia imaginar todas as narrativas, as conversas, os épicos acontecendo”, diz. Aquele foi o contato direto com o mundo real do que até então era um imaginário feito das músicas com alaúde ouvidas em casa, das comidas árabes e seus cheiros, das histórias sobre as ruínas de Balbeeck. “Sou filha do Oriente, gestada no Ocidente”, afirma.
Denise diz que atualmente tem vontade de ter um contato mais profundo com os árabes no seu trabalho. Ela expôs em Marrakech, no Marrocos, em 2016, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a Cop 22. A artista usou fósseis de amonites, que existem em abundância no Marrocos, para fazer a instalação Ventre Oceânico e as exposições Ventre Cósmico e Ventre da Terra.
No mundo árabe, Denise também já esteve no Egito, a turismo, em 1982. “Fiquei maravilhada com os conhecimentos que os egípcios tinham da alma humana e da grandeza civilizatória. Fui aprender na fonte destes saberes”, conta. Ela também já esteve na condição de turista no Marrocos, em 1973. Em 2016, Denise visitou a feira de Arte de Dubai.
Denise Milan fez sua primeira exposição de artes na década de 1980 com colagem e só se deparou com a pedra como material de trabalho alguns anos depois. Antes ainda, ela fez uma escolha mais tradicional na carreira: o curso de Economia na Universidade de São Paulo (USP). De diploma em mãos, porém, foi aprender sobre arte pelo mundo. Cursos não só na área de trabalho em si, mas também correlatas, como teatro contemporâneo e danças árabes, foram alimentando a carreira que se iniciava.
A neta de libaneses afirma que teve muito suporte do pai para trabalhar com arte e entende que esse foi um caminho natural pelo fato de ela ser a terceira geração de uma grande travessia, que foi a diáspora. “Papai teve que fazer o berço, o capital, criar essa estrutura para a família dele, mas uma vez que essa estrutura já estava engendrada, foi me dado todo o aval para eu dar o salto para o imaginário. Eu tive o tempo de poder gestar uma outra realidade, de poder contar sobre essa travessia”, reflete a artista.
Denise participa também de grupos de intelectuais descendentes de imigrantes árabes que discutem os laços com a região, e faz trabalhos sociais ligados ao tema da arte. A artista é autora de vários livros, entre eles “A Linguagem das Pedras”, e lança no dia 22 de novembro, na Galeria Lume, em São Paulo, o livro “Pedra: o universo escondido”, pela BEI Editora. Além do projeto individual na Bienal, que fica aberto para visitação até 9 de dezembro, Denise tem em cartaz até 19 de novembro a exposição OrDeNAção, DNA da pedra, na Galeria Lume.
Serviço:
33ª Bienal de Artes de São Paulo
De 7 de setembro a 9 de dezembro de 2018
Entrada gratuita
terça, quarta, sexta, domingos e feriado das 9h às 19h (entrada até 18h)
quinta e sábado das 9h às 22h (entrada até 21h)
Fechado às segundas
Pavilhão Ciccillo Matarazzo – Parque Ibirapuera – São Paulo – SP
Assista abaixo vídeo no qual Denise Milan fala um pouco sobre seu trabalho com as pedras:
https://www.youtube.com/watch?v=LOeIiEtg6u8