Cairo – O Chanceler brasileiro, Celso Amorim, esteve no Egito no último domingo e teve reuniões com o presidente Hosni Mubarak e com o ministro de Relações Exteriores, Ahmed Aboul Gheit. Um acordo de diálogo estratégico foi assinado. Ele prevê articulações nas áreas de política, comércio, cultura, ciência e tecnologia e a intensificação das relações bilaterais.
Em entrevista à ANBA, Amorim falou sobre a cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), reforma do Conselho de Segurança da ONU, maior participação brasileira na busca de soluções para os conflitos no Oriente Médio e sobre o próximo Fórum da Aliança de Civilizações das Nações Unidas, que deverá ocorrer no Brasil em 2010.
ANBA – Qual é a razão da sua visita ao Egito?
Celso Amorim – Essa visita dá continuidade à que o ministro egípcio [Ahmed] Aboul Gheit fez ao Brasil em Julho de 2009. Naquela ocasião combinamos que teríamos estas consultas periódicas. Assinamos aqui [no Cairo] um acordo de diálogo estratégico e um documento de cooperação esportiva.
O que exatamente quer dizer um acordo de diálogo estratégico?
A idéia é que os ministros ou vice-ministros se vejam pelo menos uma vez por ano em encontros bilaterais, como o que ocorreu aqui, para discutir as questões bilaterais, como o comércio, cultura, ciência e tecnologia, e também os assuntos políticos de interesse comum. Durante meu encontro com o presidente Mubarak e o ministro Aboul Gheit, conversamos muito, por exemplo, sobre o Oriente Médio, a situação da região, o Sudão, Honduras, enfim, buscamos uma maneira de entendermos mais sobre a governança global. No que diz respeito às relações entre o mundo árabe e a América do Sul, essa iniciativa se fortaleceu tanto que muitos chegam até a falar da criação de um eixo estratégico entre os dois mundos.
O senhor acredita que isso acontecerá? Como a aproximação entre estes dois mundos parece neste momento aos seus olhos?
Acho que a palavra eixo acabou ficando com uma conotação negativa por causa da 2ª Guerra Mundial, mas poderíamos falar de aros que envolvem múltiplas relações. O que devemos constatar é que o mundo árabe e a América do Sul praticamente não se falavam há algum tempo, ou se falavam isoladamente, em função de um ou outro país. Há agora uma aproximação e um interesse muito maior de ambas as partes. Vi, por exemplo, outro dia que o presidente do Uruguai fez uma visita aos países do Golfo. É evidente que a Aspa criou um clima favorável a esse tipo de iniciativa. O acordo de livre comércio entre o Mercosul e o Egito, que estamos discutindo, não está estritamente ligado à Aspa, mas o clima criado por ela certamente está facilitando o seu andamento.
Como o senhor avalia as relações comerciais e econômicas entre o Brasil e o Egito?
Nosso comércio com o Egito aumentou de maneira significativa. A balança comercial era de US$ 300 milhões e agora é de US$ 1,5 bilhão, ainda bastante favorável para o Brasil. Também notamos que há um começo de interesse dos investidores brasileiros aqui no Egito e também de investidores egípcios lá [no Brasil]. Há também outras hipóteses que estão sendo consideradas. O Brasil é um país que tem muita demanda por fertilizantes e o Egito tem um grande potencial neste setor. Não sei exatamente tudo o que vai acontecer, mas se nós firmarmos o acordo Mercosul-Egito, acredito que o comércio pode triplicar em poucos anos.
Essa visita demonstra também o interesse crescente do Brasil em se envolver em questões políticas globais, como é o caso do problema do Oriente Médio. O Brasil deve entrar temporariamente, em Janeiro, para o Conselho de Segurança da ONU, o que muitos observadores vêem como um primeiro passo para o Brasil se tornar um membro permanente…
A esse respeito, devo dizer francamente que, se a ONU tivesse sido fundada hoje, e se tivesse membros permanentes, o Brasil seria certamente um deles. Eu não tenho a menor dúvida sobre isso. Mas é claro que reformar um estatuto que já existe é sempre mais difícil do que fazer um novo. Mas, na prática, o Brasil, hoje, está em quase todos os fóruns globais. Talvez a questão do Conselho de Segurança, justamente porque depende de uma reforma da Carta das Nações Unidas, que está sujeita à aprovação de dois terços, que por sua vez está sujeita à ratificação de todos, inclusive dos membros permanentes, é mais complexa.
De que maneira o Brasil quer se envolver mais na questão do Oriente Médio?
Veja bem, no mês de novembro, só para dar um exemplo, estiveram no Brasil os presidentes de Israel, da Autoridade Palestina e do Irã. Isso em um único mês. Eles é que foram ao Brasil, não fomos nós que viemos para cá. É claro que isto também é fruto de um trabalho que vêm ocorrendo há muito tempo, fruto do interesse do presidente Lula, da dimensão que o Brasil vem assumindo na cena mundial. Acho que é natural que o Brasil se interesse em participar das questões do Oriente Médio, porque elas afetam a paz mundial. E se afetam a paz mundial, evidentemente nos afetam também. Sem falar do número de descendentes de árabes que vivem no Brasil.
O Brasil está elaborando uma estratégia para participar de maneira eficaz na resolução do conflito do Oriente Médio, ou pelo menos como um ator de peso nessa questão?
Não vamos aparecer com uma solução totalmente nova para a questão do Oriente Médio. Todas as soluções possíveis já foram aventadas. O que é necessário é vontade política para implementá-las. No nosso caso, gostaríamos de poder contribuir para o diálogo. Acho que um país como o Brasil poderia fazê-lo com facilidade. Por causa de nossa própria história ou pela história que o Brasil tem nesta região. Pelo respeito que o Brasil inspira internacionalmente. Não queremos fazer isso sozinhos, mas nos juntando a outros atores. Aliás, nos juntando a outros países em desenvolvimento, como a África do Sul, a Índia, que poderiam ter uma influencia positiva. Confinar esta discussão ao “Quarteto” não deu grandes resultados, a realidade é essa. Então acredito que é preciso ter um pouco mais de representatividade da comunidade internacional.
O que isso significa em outros termos, um envolvimento maior do Brasil no Quarteto, o reforço do papel do Conselho de Segurança nesta questão ou ainda alguma outra terceira idéia?
Poderia haver uma combinação entre essas maneiras. O Conselho de Segurança é o órgão legitimo para tratar das questões internacionais e o Brasil apóia o tratamento em seu âmbito, mesmo sabendo que o Conselho de Segurança está sempre sujeito ao veto. De qualquer maneira eu já havia dito isso à [ex-chanceler israelense] Tzipi Livni quando ela estava no governo, que [a conferência de] Anápolis [nos EUA] era um bom formato, inclusive para Israel. Porque ele não estaria sujeito às maiorias, que eles chamam de maiorias automáticas da Assembléia Geral. Mas ao mesmo tempo era suficientemente representativo para que a comunidade internacional estivesse envolvida e servisse de garantia para qualquer coisa que fosse decidida lá. Mas isso é uma dimensão. Poderíamos ter uma nova Anápolis, dizemos isso sempre. De vez em quando ouvimos outras idéias como a do presidente [da França, Nicolas] Sarkozy, que cogita fazer uma conferência em Paris. Para isso ele teria certamente o nosso apoio. Mas temos que saber se os países da região também estão interessados. Não adiantaria fazer uma conferência que não tenha participação dos países implicados no problema. Acredito que poderia se seguir um processo semelhante à Anápolis, isso seria positivo. Por outro lado, mesmo sem desfazer a realidade do Quarteto, penso que o grupo poderia fazer com que outros países participassem de seus trabalhos e reuniões, porque o aumento do número de países envolvidos nas discussões poderia arejar mais o ambiente. E acho que não seria mal, além do Quarteto – que inclui o Secretariado da ONU, Rússia, Estados Unidos e União Européia -, incluir também uns três ou quatro países em desenvolvimento, talvez também mais uns dois ou três países árabes. É verdade que ainda não tenho a fórmula precisa, mas acredito que arejar esse processo seria positivo, porque esta é uma questão que interessa a todos.
O Brasil está se preparando para receber, dentro de alguns meses, a terceira reunião do Fórum da Aliança de Civilizações das Nações Unidas. Como andam os preparativos para esta reunião e o que o Brasil pretende apresentar em termos de discussões sobre a relação entre o Islã e o Ocidente?
Acredito que o Brasil é o próprio exemplo da Aliança de Civilizações. Não que tenha sempre sido pacifico, pois sabemos que no Brasil houve escravidão ou matança de indígenas, coisas que são obviamente condenáveis. Mas houve também muitas imigrações provindas de diversas origens, houve uma integração social cada vez mais profunda, por isso acho que o Brasil, de alguma maneira, sintetiza o que pode ser obtido com um bom convívio entre diversas culturas, diversas religiões, etnias. O que acho que podemos acrescentar a este debate, sem querer substituir o que já existe, é um pouco a dimensão africana, tão importante no Brasil e que esteve pouco presente nas primeiras reuniões do Fórum, que nasceu mais como uma discussão entre o Ocidente e o Islã, que continua sendo importante. Mas acho que talvez seja até mais fácil encarar uma questão de alianças num quadro mais global, do que colocá-lo num quadro dicotômico, como se no mundo houvesse apenas duas grandes civilizações. Não acredito no que dizem sobre um conflito entre o Islã e o Ocidente, pois, veja bem, o Brasil geograficamente se encontra no Ocidente. E qual o problema que existe entre o Brasil e o Islã? Nenhum. O problema na verdade existe com os fundamentalismos, mas eles existem em todas as partes não somente nas religiões.