São Paulo – Era dia 11 de setembro de 2001 quando o cineasta brasileiro Otavio Cury e sua família chegaram de férias à cidade de Homs, na Síria. Essa era a primeira vez que Otavio pisava no país árabe, terra que seu bisavô deixou em 1926 para vir ao Brasil. No único dia em que o cineasta ficou na cidade, descobriu um livro, de 500 páginas, escrito pelo seu bisavô, Daud Constantino Cury. "Foi assim que surgiu a vontade de investigar a história, as memórias perdidas do meu bisavô", afirmou à ANBA o cineasta e produtor da Outros Filmes, que até o final do ano concretiza o longa-metragem Constantino, que tem como base a história do bisavô.
A tradução do livro, do árabe clássico para o português, começou em 2007, em São Paulo, por um iraquiano que mora no Brasil. Com algumas traduções na mão, Otavio foi em busca de mais informações. Foi ao consulado da Síria em São Paulo e ao Centro Cultural Árabe Sírio. "Fui filmando todos os lugares e as conversas que eu tinha, pensava que poderiam ser usadas para montar um roteiro e buscar financiamento", disse Cury.
De acordo com ele, no final de 2008 o projeto do Constantino conseguiu dois financiamentos, um pelo Programa de Fomento ao Cinema Paulista, da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, e outro pelo Iran Documentary Fund (IDF), fundo de fomento ao documentário do Irã. "Mesmo assim ainda estamos atrás de fundos adicionais", acrescentou o cineasta.
Com o dinheiro na mão, Cury e sua equipe, com mais três pessoas, incluindo a fotógrafa gaúcha Raquel Brust, viajaram para Síria em 2009 para começar as gravações. No período de um mês, a equipe, com autorização do governo sírio e com a ajuda da embaixada brasileira em Damasco, deu início às gravações e às pesquisas mais aprofundadas sobre a história de Constantino. "Quando voltei para Homs, o que eu descobri foi algo 50 vezes maior e mais emocionante do que eu achava (sobre o seu bisavô)", afirmou o cineasta.
Em Homs, Cury percebeu que seu bisavô, além de ter sido professor de Matemática – que era a única informação da qual ele tinha conhecimento antes de encontrar o livro – foi poeta, jornalista, dramaturgo, compositor, músico, ativista e professor de Artes. Segundo o cineasta, seu bisavô foi um dos únicos professores cristãos a ensinar em Homs no século 19, num país que vivia há quatro séculos sob dominação otomana.
"Descobri que ele fundou o primeiro jornal da cidade de Homs, que existe até hoje, e achei todos os artigos escritos por ele", contou Cury, que visitou a redação do Jornal Homs, fundado em 1909. Outra descoberta foi uma igreja, onde os músicos ainda cantam uma música composta por Constantino nas missas. "Eu também fui a duas escolas em que ele deu aula e que ainda funcionam normalmente na cidade", disse Cury.
Segundo o cineasta, seu bisavô também foi uma pessoa muito importante na história do teatro sírio. Constantino teve ligação com Abu Khalil Al-Qabbani, considerado o pai do teatro árabe e principal autor da Renascença Árabe. Os dois trabalharam juntos no teatro Khan Al-Zait, em Damasco, e depois Constantino o levou para Homs quando o teatro de Al-Qabbani foi incendiado pelos turcos.
"Esse filme vai ir além da história do meu bisavô. Vai acabar falando do período do final do Império Otomano, que teve duração de 400 anos", disse Cury, que já tem 100 horas de gravação. Com os desdobramentos das pesquisas e as novas descobertas da história de seu bisavô, Cury acabou indo filmar também na Jordânia, Líbano e Turquia. "Faz quatro anos que estou trabalhando nesse filme. Agora já está tudo filmado e estamos em fase de montagem", acrescentou ele, que deve lançar o filme nos cinemas em 2011.
Paralelamente ao filme, Cury e a fotógrafa Raquel Brust vão lançar um livro de fotos e poesias, com as imagens do making off da viagem e alguns textos de convidados especiais, inclusive poemas do Constantino. O livro vai ser publicado em três idiomas, português, árabe e inglês. "Estamos atrás de patrocínio para essa publicação", disse Cury, que tem recebido apoio de muitas pessoas e instituições árabes e brasileiras.
De acordo com o cineasta, o início do trabalho, que envolvia a tradução e as pesquisas, foi bem difícil e desgastante. "Cheguei a desistir algumas vezes", disse. "Um pouco depois da euforia, de se emocionar muitas vezes, talvez me sinta um pouco mais sírio, mas não sou sírio. Passei a admirar a história e a cultura dessa gente, que são pessoas incríveis, generosas e hospitaleiras", afirmou.
Memórias de Otavio
Otavio Cury, 38 anos, é formado em Agronomia pela Universidade de São Paulo (USP), mas nunca exerceu a profissão. Aos 30 anos resolveu fazer Cinema e a primeira produtora na qual trabalhou foi a Mutante Filmes, em São Paulo, de onde saiu o seu primeiro documentário, Cosmópolis, em 2005. "O vídeo nasceu com os 450 anos da cidade de São Paulo. Resolvemos fazer um filme sobre a cidade e mostrar a participação que os imigrantes tiveram na história da cidade", disse Cury, que dirigiu o documentário junto com Camilo Tavares e Cói Belluzzo.
Entre os 12 personagens do filme estão um egípcio e dois sírios, que contam um pouco de suas histórias. O documentário agradou o público e foi selecionado para os principais festivais de cinema do Brasil e exibido em diversos festivais europeus. Este ano, após ganhar legendas em árabe, com patrocínio da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, o filme foi exibido na Síria. Resultado: mais duas apresentações já estão agendadas para este ano em Damasco.
Outro filme de Otavio, que está saindo do forno, é Xié, nome de um rio na Floresta Amazônica. O longa-metragem vai mostrar um grupo de cirurgiões voluntários da cidade de Campinas, interior de São Paulo, que viajam para a floresta amazônica e montam hospitais temporários para atender uma aldeia indígena, com mais de 500 pacientes em busca de operações. O filme deve ser lançado ainda este ano.