São Paulo – O presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marco Americo Lucchesi (foto acima), é de ascendência italiana, mas sua trajetória profissional tem muitos encontros com o mundo árabe. Homem de múltiplos títulos, o poeta, romancista, memorialista, ensaísta, tradutor, editor e professor Lucchesi fala a língua árabe, e na sua história estão desde a participação em uma antologia no idioma até escritos inspirados em vivências nos países árabes e diálogos com personalidades e escritores árabes.
Lucchesi assumiu o terceiro mandato na presidência da ABL em dezembro passado, depois de estrada consolidada na literatura, na militância pelos direitos humanos e no ensino universitário, e de ter aberto interlocução nas áreas em que atua, principalmente no campo literário, em vários países. A vontade de conhecer o levou a muitos territórios. “A literatura para mim tem muitas vozes, tem muitas línguas, muitas pátrias”, diz.
O brasileiro ocupa a cadeira 15 da ABL desde março de 2011 e é professor de literatura comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele começou a publicar livros quando adolescente. Entre suas obras mais conhecidas estão Meridiano celeste & bestiário, Sphera e Faces da utopia, as três de poesia, e A memória de Ulisses, A paixão do infinito, Teatro alquímico e O sorriso do caos, todas com ensaios. Suas publicações, textos e poemas foram traduzidos para cerca de 20 idiomas, entre eles o árabe.
A curiosidade de Lucchesi o levou a querer saber mais sobre os países árabes ainda na infância, quando o vendedor ambulante de doces árabes passava na frente da sua casa, em Niterói, no Rio de Janeiro. Com oito anos, ele pediu ao pai que o levasse ao Saara, mercado da cidade do Rio com venda de produtos árabes. No local, Lucchesi perguntava aos comerciantes libaneses como se falava uma e outra palavra em árabe. “Aí eles escreviam num bloquinho”, relata.
Algum tempo depois, o futuro escritor ganhou uma gramática de árabe. O caminho natural foi estudar o idioma, ler os poetas árabes e viajar por seus países. “O mundo árabe veio como um achado de leitura importante, os poetas, os filósofos, a própria língua que sempre me capturou de forma intensa”, diz. Lucchesi afirma que a beleza da escrita e da pronúncia e a sinuosidade das palavras árabes o encantaram profundamente.
A possibilidade de falar o idioma fez o escritor construir uma história de muitas vertentes com os árabes. “Vi que falar o árabe abria um horizonte fascinante de intimidade e de aproximação”, afirma, contando em seguida sobre sua ida aos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, no Líbano, na década de 1990. Na guerra civil libanesa, grupos apoiados por Israel invadiram e mataram centenas de pessoas nestes campos.
Lucchesi afirma que falar em árabe deu a ele a possibilidade de perceber os campos a partir dos olhos das crianças, dos velhos e das mulheres que viviam neles. “Portanto, eu vi o campo da forma mais privilegiada possível, mas também da forma mais dolorosa”, diz, lembrando que ouviu das mulheres que não houve espaço suficiente para enterrar os mortos do massacre. “Eu tive orgulho de falar árabe, um orgulho afetuoso, um orgulho de aproximação, um orgulho de me sentir parte de um processo”, afirma.
Outra história bonita – mas triste – de Marco Lucchesi com o mundo árabe é de uma amizade feita na Síria, cujas memórias constam em seu livro “Os olhos do deserto”, publicado no 2000 pela editora Record, e republicado pela E-book em 2019. Esse livro traz lembranças de países árabes visitados, entre elas da convivência com o padre italiano Paolo Dall’Oglio, que vivia em um mosteiro de jesuítas no deserto da Síria.
Lucchesi procurou o padre por recomendações de amigos. Os dois se tornaram amigos, mas Paolo desapareceu após ter ido ao encontro de Abu Bakr al-Baghdadi, o fundador do Estado Islâmico. Anos depois, Lucchesi publicou o livro “Os olhos do deserto”, onde constam cartas que o padre escreveu para ele. “Fiz questão de não distribuir, mas mandar apenas para bibliotecas porque não sabia dizer se ele estava vivo ou não”, conta.
Nas cartas ao brasileiro, o padre falava das suas preocupações. “Ele previa o imenso desastre que aconteceria na Síria e, ao mesmo tempo, demonstrava uma vontade de correr todos os riscos, inclusive de enfrentar a própria morte, caso necessário fosse”, afirma. O nome de Paolo Dall’Oglio chegou a ser cogitado para Nobel da Paz.
Desde cedo, Lucchesi também soube quem eram os grandes escritores árabes e foi ao encontro deles. O egípcio Nagib Mahfouz, Nobel de Literatura de 1988, hoje já falecido, recebeu o brasileiro em sua casa, no Cairo, na década de 1990. “Eu já era um leitor apaixonado dos livros deles, da famosa triologia”, conta, sobre A Triologia do Cairo, escrita por Mahfouz. Lucchesi lembra que foi recebido com suco de manga, em pleno período de Ramadã, e que perguntou ao egípcio sobre os personagens dos livros e os planos de livros futuros.
O escritor também esteve com o poeta sírio Adonis para um bate-papo em uma cafeteria de Paris e conversou por telefone com o escritor palestino Mahmoud Darwish, falecido em 2008. A ligação telefônica foi feita para falar sobre direitos de publicar sua obra, e Lucchesi contou a Darwish que leu “Mural” quando estava em Roma, em meio a ruínas. “Um dos mais belos poemas da língua árabe escritos no século 20, e não apenas do século 20”, diz o escritor sobre Mural, livro de Darwish com um grande poema sobre sua experiência de proximidade da morte, em 1997.
A lista de autores árabes que marcaram Lucchesi é vasta e o contato com eles quase sempre virou poema, ensaio, lembrança em forma de texto na sua obra. O encontro com Mahfouz, por exemplo, está em Saudades do Paraíso, livro de memórias publicado pela primeira vez em 1997 pela Lacerda Editores e republicada pela E-book em 2019. Nele também estão lembranças de outro país árabe, o Marrocos.
O brasileiro publicou ainda o livro “Caminhos do Islã”, em 2002, no qual ele reuniu textos de especialistas sobre o tema. Lucchesi descreve a obra não como religiosa, mas como um discurso poético e estético. Na época, havia muitas críticas ao Islã e o escritor quis mostrar que essa religião tinha uma contribuição importante ao mundo. O livro de Lucchesi foi indicado ao Prêmio Portugal Telecom no ano seguinte da sua publicação.
Quando Lucchesi se põe a falar sobre o mundo árabe, é muito o que tem a dizer. As viagens feitas pela região incluem passagens por Egito, Marrocos, Mauritânia, Arábia Saudita, Líbano, Síria, Jordânia, Omã e Emirados Árabes Unidos. Omã é lembrança recente. Marco Lucchesi esteve no país em janeiro deste ano, onde teve encontros com autoridades locais para falar de colaboração em projetos de paz e diálogo.
Apesar das andanças pela literatura árabe e seus países, no entanto, a região não é o foco central do trabalho de Lucchesi, que mostra nas suas obras o interesse múltiplo que tem pelo globo e seus assuntos. Filosofia da matemática e literatura romena, por exemplo, estão entre os interesses atuais do presidente da Academia Brasileira de Letras. “Quem é escritor tem muitas casas e acha que o planeta é a casa dele”, afirma.
Lucchesi vê a literatura como o lugar do diálogo, da multidisciplinaridade, onde as diferenças não precisam ser demonizadas, mas são bem-vindas. Além da dedicação à literatura e à universidade, Lucchesi atua na área de direitos humanos, visitando prisões, quilombos, comunidade indígenas e outros espaços de grupos desfavorecidos, aos quais leva livros, diálogo, escuta, entre outras ações.
Textos de Lucchesi foram parte de uma antologia de autores brasileiros em árabe lançada em abril do ano passado na Feira Internacional de Livros de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. A Câmara de Comércio Árabe Brasileira foi parceria do projeto. A antologia reuniu textos de 12 autores. Lucchesi foi um dos autores que esteve na feira para o lançamento. A diretora cultural da Câmara Árabe, Silvia Antibas, também integrou o grupo na viagem.