São Paulo – “O Fascismo é uma criação das massas”, disse Hiam Abbass, citando um trecho do livro de Georges Bernanos que deu origem à peça de mesmo título “A França contra os Robôs”, concebida pela artista e que está em turnê pelo Brasil desde a semana passada. A atriz e diretora (foto) recebeu homenagem à sua carreira esta semana em São Paulo e, durante o evento no Teatro Aliança Francesa, Abbass falou à ANBA sobre sua filmografia, cinema árabe, a peça teatral, o fascismo atual e a situação na Palestina.
“A França contra os Robôs” é um monólogo que Abbass ajudou a conceber. Ela disse ter se chocado com a contemporaneidade do livro, escrito em 1944. “Meu companheiro Jean-Baptiste Sastre atua e dirige a peça, e esse é um trabalho nosso, ele leu o livro do Bernanos e quando eu li me surpreendi, porque é como se ele tivesse visualizado o mundo atual”, revelou.
Abbass conta que Bernanos fala de fascismo em sua obra “porque viveu a Segunda Guerra Mundial, Mussolini, Hitler, Stalin”, e que ele começou a criticar a igreja católica após a Guerra Civil Espanhola, pois a instituição ficou ao lado do ditador Francisco Franco. “Enquanto vivermos e pensarmos como massa, teremos fascistas no poder fazendo isso; não só o humano é fascista, mas a tecnologia se tornou fascista em geral, olhe para as pessoas e o que elas estão fazendo com seus telefones e suas tevês, tem fascismo todos os dias em nossa vida diária”, disse.
Para Abbass, a narrativa é “uma descrição de seu jeito (de Bernanos) de pensar o modernismo, o mundo de máquinas, a destruição massiva dessa nova tecnologia do início do século 20, e a forma como ele escreve sobre isso, analisa e conecta a individualidade do ser humano com sua vida, com os perigos se continuarmos dessa forma”. A atriz revelou que Bernanos se dirige em muitos momentos à juventude, inclusive à juventude brasileira (o escritor viveu no Brasil por dez anos). “A juventude é responsável pelo que vai acontecer daqui para frente, porque nós não vamos mais estar aqui”, disse.
“Estou muito feliz de descobrir o Brasil pelos olhos de um grande homem e um grande pensador, poder pegar emprestado o olhar desse autor que morou aqui; ele escolheu viver como um homem pobre, escrevendo e instruindo a juventude e as pessoas que queriam pensar em como a humanidade está em perigo.” A artista afirmou que este é um trabalho enriquecedor e emocionante, e um dos mais importantes que já fez. “Acho que Sastre e Gilles Bernanos (neto do autor, que fez a adaptação para a peça) compartilham esse pensamento comigo; não devemos negligenciar esse olhar [de Bernanos] hoje em dia.”
A peça estreou na França e passou por três cidades. Aqui no Brasil, foi apresentada em Florianópolis e, depois de São Paulo, irá para o Rio de Janeiro, Juiz de Fora e Ouro Preto, em teatros da Aliança Francesa de cada uma das cidades por onde Bernanos passou ou viveu. Depois, retorna à França, para mais apresentações, com planos de ir também para Jerusalém e, ano que vem, aos Estados Unidos.
Início da carreira
Abbass nasceu em Nazaré, cidade majoritariamente árabe no atual território de Israel, e viveu num vilarejo palestino com sua família árabe, onde estudou e desde pequena demonstrava interesse pelas artes. “Eu sempre amei atuar, sempre fui muito artística desde muito nova, fiz uma peça para a escola bem novinha e achei tudo muito mágico”, relembrou.
Na adolescência, estudou fotografia e foi numa sessão de fotos de um teatro que ela decidiu se juntar à companhia teatral, onde atuou por seis anos. Depois, a atriz fez pequenas participações em dois filmes palestinos.
A artista então decidiu se mudar para a França, onde vive até hoje, “para fugir da censura tanto de Israel quanto da Palestina”. Num primeiro momento, fez alguns filmes árabes, produções conjuntas com a Europa, como Haifa e Satin Rouge. “Aprendi a falar o árabe em diferentes sotaques, e isso me permitiu fazer papéis do mundo árabe de diversos países, além do inglês e francês; gosto de papéis e histórias que me comovem de alguma forma”, informou.
Hollywood
A presença da atriz palestina em Hollywood é, segundo ela, um sinal de mudanças dos últimos tempos, apesar de o fascismo e os preconceitos ainda estarem muito presentes na cultura mundial. “Acho que o 11 de setembro abriu algumas mentes no mundo ocidental para tentar entender quem é esse inimigo, quem são esses terroristas, o que é esse clichê, esse estereótipo; e acredito que esse processo está dando início a uma nova forma de criação de personagens árabes. Não estou dizendo que está todo mundo fazendo isso, nem que é um processo fácil, mas estou dizendo que uma porta se abriu.”
Quando perguntada sobre a questão da representatividade, de ser uma mulher árabe palestina em produções de alcance mundial, a artista acredita que “trabalhando juntos, nossa vontade e trabalho podem ajudar a trazer o nome da Palestina para um espectro maior em todo o mundo”, e que “cada pessoa tem suas ambições, seus sonhos, e elas devem acreditar que são capazes de realizar esses sonhos e correr atrás disso: ‘isso é o mais importante para mim’; é bom dizer para elas que é possível, mas que é fruto de muito trabalho, não aconteceu do nada”.
Hiam Abbass pensa que seu trabalho em Hollywood não necessariamente ajuda a disseminar o cinema árabe. “Acho que quem se interessa pelo cinema árabe e pela cultura já assiste independente de eu estar em Hollywood, mas eventualmente sim, algumas pessoas podem ter feito esse caminho, de me conhecer por estes trabalhos e ir buscar saber o que fiz antes, pode ajudar nesse sentido”.
“Aqui no Brasil, por exemplo, as pessoas que estão me recebendo sabem da importância dessa mistura de culturas e do conhecimento que podemos adquirir trazendo pessoas de diferentes partes para conversar com artistas locais, criando um novo diálogo; a arte não conhece nacionalidade, a única nacionalidade da arte é a arte, nossa identidade é ser humano antes de mais nada”, declarou.
Seus mais recentes trabalhos na indústria norte-americana são uma participação em “The OA” (2016), série da Netflix, em que fez o papel de Khatun, uma espécie de anjo, e na série Succession (2018), da HBO, onde faz o papel fixo de Marcia, esposa de um bilionário americano. “Não pude continuar com o papel em ‘The OA’ para a segunda temporada porque estou fazendo um personagem fixo em “Succession”, que é uma série que critica o fascismo do dinheiro. No drama, eu tenho origem árabe, mas ainda não sabemos para onde isso vai no futuro, mas converso com os roteiristas e estou adorando fazer a série, porque ela expõe esse poder da riqueza”, disse a atriz. Ela atuou também em Blade Runner 2049, onde interpretou a replicante Freysa.
Herança
Inheritance (Herança, em tradução livre) é o único longa-metragem dirigido por Abbass, que também tem no currículo três curtas-metragens. “Tenho outros projetos de direção de longas em andamento, mas não posso falar muito por enquanto”, disse. Segundo Abbass, “o longa conta a história de uma comunidade de palestinos e como uma pessoa pode alcançar suas ambições com tantas tradições que acabam te aprisionando”. “Não trata uma questão política a princípio, mas eu decidi fazer o filme num ambiente de guerra, com partes em Israel e no Líbano; a mensagem é que a vida continua”.
Palestina
A artista criticou os conflitos atuais no seu país de origem. “Se este governo israelense continuar fazendo o que está fazendo, não vejo como ter uma solução pacífica. É uma situação muito difícil, e eu sinto muito pelas pessoas que estão em Gaza, nas áreas de conflito, e em prisões; Israel joga um jogo sujo com todo o mundo, e é apoiado por Trump, um homem rico e poderoso que não sabe nada de política”.
Abbass voltou a citar a obra de Bernanos e sua contemporaneidade. “Penso que se isso é o que está acontecendo, se isso é o que a humanidade quer, acho que Bernanos é necessário para que ao menos sejamos honestos sobre como cada um de nós podemos construir algo minimamente positivo para salvar a humanidade. Porque Netanyahu (primeiro-ministro de Israel) não está salvando nem os israelenses, como vai salvar os palestinos? Bernanos diz que um país que se isola, se fecha, é um país que nega sua própria identidade. Se Trump ou Netanyahu entendessem isso, suas políticas mudariam”, assegurou.
Cinema árabe
Abbass pontuou que a maioria das produções árabes de que participou foram coproduções com a França, Alemanha e outros países, principalmente da Europa. “Está havendo um aumento do número de jovens, principalmente jovens mulheres [árabes], que estão tentando cruzar a fronteira (literal e figurativa) para expressar sua arte da forma que elas a percebem, e não da forma como lhes foi ensinada; elas estão discutindo temas como homossexualidade, a opressão sofrida pelas mulheres, e fazendo críticas a seus líderes; a revolução [árabe] não aconteceu do nada, veio da percepção dessas pessoas; vejo que há uma grande geração de jovens que para mim são as sementes do futuro”, afirmou. A atriz disse ainda que não gosta de nenhuma forma de radicalismo, e que nada avança ou é conquistado com separação ou segregação.
O evento
O evento da segunda-feira (17) contou com bate-papo com a atriz, com participação do músico Sami Bordokan e intervenções poéticas da atriz Fernanda Azevedo da Kiwi Cia. de Teatro e do Cabaré Feminista. O evento foi realizado pela Beit21 em parceria com a Aliança francesa e apoio da Federação das Associações Muçulmanas no Brasil (Fambras) e da Câmara de Comércio Árabe Brasileira. Da Câmara, estiveram presentes o vice-presidente de Relações Internacionais, Osmar Chofi, a diretora cultural Silvia Antibas, o diretor Mohamad Murad e o conselheiro e Arthur Jafet.
“Ser homenageada pelo trabalho é uma coisa, agora fazer o que se faz porque você acredita que deveria estar fazendo, isso é o mais importante, e eu gosto de pensar que este é um momento de conhecer pessoas que gostam do meu trabalho e trocar com elas”, concluiu a artista.