São Paulo – Pela primeira vez, o "Livro da Alma", escrito em árabe pelo médico, político e filósofo Ibn Sina ganha uma tradução em português. O trabalho consumiu quase três anos de dedicação do professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Miguel Attie Filho. Neste livro, o autor procura descrever a natureza humana por meio da alma sem, no entanto, valorizá-la do ponto de vista religioso. É também considerado uma "ponte" entre a história do pensamento grego e europeu.
O "Livro da Alma" é parte de uma enciclopédia chamada, em árabe, de Al Sifa (A Cura), escrita entre 1.020 e 1.030. O "Livro da Alma" é o sexto da parte das Ciências Naturais, uma das divisões que compõem "A Cura", também formada pela Lógica, Matemática e Metafísica. Avicena, como Ibn Sina é conhecido no Ocidente, também é um dos precursores da falsafa, a filosofia em árabe. Seu pensamento é influenciado pelos pensadores clássicos: Platão (para quem existem duas realidades: a concreta e a abstrata), Aristóteles (que defendia a existência da realidade concreta e que é nela que se deve filosofar) e o neoplatonismo desenvolvido pelo pensador Plotino, que defende, por sua vez, que o mal não existe, porém a imperfeição sim.
A história do pensamento está na base da formação acadêmica de Miguel, assim como a obra de Avicena. Os estudos sobre o "Livro da Alma" começaram quando Attie preparava o mestrado e continuaram pelo doutorado, pós-doutorado e livre-docência do professor, de 50 anos. Não é recente, contudo, seu interesse pela obra deste filósofo que nasceu onde hoje fica o Uzbequistão e desenvolveu seu trabalho no mundo persa. "Quando estudava para o mestrado, vi que quase não havia referência aos pensadores árabes. Não apareciam em lugar nenhum. Fui incentivado a pesquisar porque sua presença estava muito ausente, embora nos anos 50 e 60 houve um resgate deles", recorda o tradutor.
Quando foi convidado pela editora Globo a traduzir o livro, pouco depois de concluir seu doutorado, em 2004, Attie conhecia bem o "Livro da Alma". Mas, depois de começar a tradução, percebeu que se tratava de uma "aventura". "O chamado para traduzir o livro foi quase um desafio porque o que eu sabia a respeito dele e de suas expressões estava no limite. Neste caso, não se trata apenas de traduzir do árabe para o português. Trata-se, também, de interpretar e traduzir os conceitos de filosofia", recorda. Em muitas ocasiões, Attie precisou consultar expressões em grego para encontrar a palavra ideal.
Para o tradutor, além de fazer existir no Brasil uma obra da filosofia nunca traduzida diretamente do árabe para o português, o "Livro da Alma" encaixa mais uma peça no quebra-cabeças da história do pensamento. Os pensadores árabes do século 9 estão no "meio do caminho" entre gregos, como Platão (427a.c – 347a.c) e Aristóteles (384a.c. – 322a.c.), e os eurpeus dos séculos seguintes. Attie afirma que uma das principais características de Avicena é mostrar que não existem dois tipos de pensamento: Oriental e Ocidental. "Isso aparece na Europa depois do Renascimento (no século 14). Isso é parte de uma ideologia. Por isso existe essa divisão. O ‘Livro da Alma’ apresenta dificuldades para quem defende essa cisão", diz.
Quando escreveu o "Livro da Alma", Avicena não o fez pensando na alma do ponto de vista religioso. "Ele também era médico. Para falar da alma, fala antes de outras áreas do corpo que não tratam da alma. Trata antes do corpo, para depois falar da alma. Ele descreve os sentidos, as câmaras cerebrais, a cognição. O modo como arquiteta o livro não é pela religião, mas pelo viés da razão. É um livro de ciência e filosofia", diz Attie. "Ele fala da cura da alma a respeito das coisas: do homem, da sociedade, da natureza e do universo", explica. Attie observa que, embora não seja em si religioso, o "Livro da Alma" ganha uma interpretação "esotérica" em regiões de maioria islâmica xiita. "Eles tiram do livro a parte mais espiritualista, enquanto a interpretação científica é maior na Europa", completa.
Attie, que é descendente de sírios, já traduziu três filósofos do mundo árabe: Al-Farabi, Al-Kindi e Avicena. Revela que se a filosofia árabe tivesse mais exemplares traduzidos para o português ele se aventuraria por outras traduções da obra de Avicena. Mas isto ainda não ocorre. "Gostaria, então, de traduzir a obra principal de cada um dos grandes autores", afirma. Desses, ainda falta o filósofo Averróis.