São Paulo – A elaboração de uma constituição que atenda as demandas dos vários segmentos da sociedade egípcia é o grande desafio do país após a queda do regime de Hosni Mubarak, segundo Mohamed ElBaradei, um dos principais nomes da política do Egito. A saída de Mubarak foi resultado dos levantes populares que levaram milhares de pessoas à praça Tahrir, no Cairo, em 2011, no movimento que ficou conhecido como "Primavera Árabe" e que atingiu países do Norte da África e do Oriente Médio.
Baradei, ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2005, está no Brasil para participar do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento em São Paulo e em Porto Alegre. Nesta segunda-feira (29), ele concedeu entrevista coletiva em um shopping da capital paulista, na qual falou sobre democracia no Egito, os conflitos na Síria e a questão nuclear do Irã.
"A constituição é nossa principal luta", afirmou. Segundo ele, o texto que está atualmente sendo desenvolvido para se tornar a principal diretriz legal do país não está abrangendo os direitos dos jovens, dos cristãos e das mulheres. "Há coisas muito incômodas [no texto da Constituição], que fazem com que muitas pessoas, como eu, não se sintam confortáveis", disse ele. "A Constituição é a lei básica, é algo que não pode comprometer a liberdade, a dignidade e a igualdade humana", destaca.
Sobre a possibilidade de a sharia [lei islâmica] ter uma forte influência sobre a carta magna do país, Baradei diz que há princípios dela que não diferem muito dos contidos na declaração dos direitos humanos. "Equidade e justiça são princípios básicos do Islã. Há muitas visões diferentes sobre a sharia e por isso há esse embate de opiniões", afirma. "A esperança expressada pela Primavera Árabe tem que ser protegida por todos. A Irmandade Muçulmana tem uma visão que não precisa ser partilhada por todas as pessoas", diz, sobre o grupo ao qual pertence o atual presidente do Egito Mohamed Morsi.
Baradei ressaltou que, atualmente, 37% da população egípcia é analfabeta e que metade da população do país não tem acesso aos cuidados de saúde. "Temos que garantir que esses direitos básicos sejam assegurados. Nós não estamos em um nível de ter centro-direita ou centro-esquerda. Precisamos cuidar de saúde, educação e infraestrutura. Infelizmente, a transição foi terrível, totalmente confusa. Ainda não colhemos os frutos da revolução, como os empregos. Ainda temos muito trabalho para fazer", falou.
Apesar de ter fundado um novo partido político em abril deste ano, o Partido da Constituição, ele afirma que não irá concorrer às próximas eleições presidenciais do Egito. "Acho que sou mais efetivo trabalhando de fora, tendo oportunidades como estas, de vir ao Brasil. Acho que precisamos ter uma nova geração [na política]. Posso atuar como um padrinho, mas de fora", afirma. Ele chegou a se candidatar na última eleição no país, mas retirou sua candidatura, alegando que não havia uma real democracia no Egito.
Baradei aposta nos jovens que promoveram a revolução no país por meio da internet como o futuro político do Egito. "Eles não estão casados com nenhuma ideologia. Eles querem empregos, oportunidades. Eles sentem que seu futuro está preso, que a geração anterior está corrompida. [Os jovens] não tinham um plano B para a queda do regime. O que eles estão tentando fazer é se unir em um partido político. Espero trabalhar com eles, dar poder a eles. Esses jovens nunca praticaram a democracia, eles não sabem como a democracia funciona", ressaltou. Para ele, ainda vai levar tempo para que haja democracia plena no Egito.
Síria, Irã e Brasil
Baradei também falou sobre outras questões do Oriente Médio. "Não podemos aceitar a situação na Síria. É preciso assegurar que se pare a matança", afirmou. "Deve haver uma operação das Nações Unidas, na qual os países vizinhos possam estar envolvidos. Não se pode apenas dizer que é uma situação horrível. Os países ocidentais não querem enviar forças. Infelizmente, a Síria tem se tornado um campo de batalha para forças ideológicas", lamentou.
Sobre o Irã e o fato de o país ser acusado pelos Estados Unidos de possuir armas nucleares, Baradei afirmou achar que não haverá intervenção militar. "Não vejo motivo para isso. Acho que seria um desastre total, como aconteceu no Iraque, onde milhares de civis foram sacrificados", apontou.
Para ele, há uma questão específica entre Irã e Estados Unidos e não haverá solução se os dois países não conversarem entre si. "As sanções não são a solução. As sanções sozinhas nunca resolveram nada. Um tempo atrás, quase conseguimos uma solução entre [Barack] Obama (presidente dos Estados Unidos) e [Mahmoud] Ahmadinejad (presidente do Irã), mas questões internas do Irã interferiram e também houve interferência do Brasil e da Turquia", comentou, em referência a tentativas dos governos brasileiro e turco de negociar sobre a questão nuclear do Irã em 2010.
Entretanto, Baradei não se mostrou contrário a um papel mais forte do Brasil no cenário internacional, incluindo os assuntos do Oriente Médio. "O Brasil se tornou um grande poder econômico. Eu gostaria de ouvir mais os países do Sul porque eles têm sempre uma visão diferente. Precisamos da visão destes países que sabem o que a pobreza significa. Não se pode ter somente uma abordagem [sobre os problemas internacionais]. Queremos ver o Sul não só reclamando de que há diferenças de tratamento. Se você olhar o Conselho de Segurança da ONU, vai ver que ele é dominado pelos países do Ocidente, com a China e a Rússia balanceando, mas o Sul está ausente", apontou.
A agenda de Baradei não contempla encontro com a presidente Dilma Rousseff, mas ele diz que se encontraria com ela, caso houvesse oportunidade. O egípcio realiza palestra na terça-feira (30) em São Paulo e em Porto Alegre na quarta-feira (31). Ele fica no País até sexta-feira (02), mas não tem outros compromissos oficiais agendados.

