Sharjah – “Minha melhor amiga na infância era branca. Um dia perguntou para a mãe quando eu ia melhorar”, narra a artista visual brasileira Aline Motta na obra “A Água é uma máquina do tempo”, exposta na décima quinta Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos. O trabalho foca principalmente, segundo ela, na história da tataravó chamada Ambrosina, que vivia no centro do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX. “Fazendo um contraponto com o presente, também faço um relato sobre a morte da minha mãe, que faleceu em 2011, e como as histórias de vida dessas mulheres se embaralham e se entrelaçam através dos tempos”, conta Aline.
Juntando material de arquivo e novas imagens com poesia falada, o vídeo traz um diálogo entre memória e registro histórico, passado e presente, esfera pessoal e a coletiva. A bienal destaca que, ao alternar esses elementos, a artista apresenta uma releitura de um tempo que fala – e muito – sobre opressão racial, vulnerabilidade e família.
Aline é uma dos 150 artistas e coletivos que participam da Bienal de Sharjah 15: Pensando Historicamente no Presente, que retorna após ser adiada pela pandemia. “É uma bienal em que a maioria dos trabalhos estabelece uma forte relação com arquivos, sejam eles íntimos e pessoais como os meus, ou históricos e institucionalizados”, diz a brasileira.
Concebido pelo nigeriano Okwui Enwezor, que morreu em 2019 aos 55 anos, e com curadoria da diretora da Sharjah Art Foundation, Hoor Al Qasimi, o evento faz uma reflexão sobre o trabalho dele. Para os organizadores, Okwui transformou a arte contemporânea e influenciou a evolução de instituições e bienais ao redor do mundo, incluindo a de Sharjah.
Hoor Al Qasimi revela que o elemento transformador foi a Documenta11, em 2002 — a direção artística do evento na Alemanha ficou a cargo do nigeriano, a primeira vez que alguém de fora da Europa o dirigiu. “Não conhecia Okwui na época, mas como alguém vindo de um país ou espaço não ocidental e indo para Kassel, na Alemanha, ver uma exposição onde todas as nossas vozes estavam presentes — quase uma plataforma para a discussão do Sul Global — foi muito inspirador e muito novo na época, então acho que foi algo que Okwui trouxe para a mesa”, diz Hoor em uma entrevista concedida em Sharjah.
A diretora da Bienal, que esteve no Brasil algumas vezes, interpretou e desenvolveu a proposta de Enwezor, que deu o título à atual edição. Vale lembrar que, antes de morrer, Okwui passou a tarefa à emiradense. Para Hoor, o resultado é uma homenagem a Okwui, uma manifestação do aprendizado que veio dele. Na declaração curatorial, ela escreve que o evento deste ano não é apenas uma bienal independente. “É o ápice de todos os predecessores de construção de relacionamentos e conversas que se desenrolam há mais de três décadas, tanto dentro quanto fora de Sharjah, desterritorializando nosso contexto local com seus equivalentes regionais em toda a constelação pós-colonial do Sul Global”, afirma a curadora.
Através das mais de trezentas obras, a bienal propõe um universo transcultural, no qual artistas apresentam perspectivas sobre nação, tradição, etnia, gênero, corpo e imaginação, como declara Al Qasimi. Os trabalhos podem ser vistos em vários locais espalhados por cinco cidades do emirado de Sharjah, cuja reputação é de um centro cultural na região. Sharjah, por exemplo, já recebeu o título de Capital Árabe da Cultura em 1998 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
“Sinto que o que fiz também foi me colocar como mulher em um espaço de convidar muitas mulheres. Tem voz feminina nessa bienal, o que acho muito importante”, aponta Hoor, que já foi responsável pela curadoria da Bienal de Lahore (Paquistão), em 2020, além de ter contribuído com várias outras exposições internacionais.
Entre as artistas estão nomes da América Latina como Maria Magdalena Campos-Pons, nascida em Cuba, a argentina Gabriela Golder, a peruana Flavia Gandolfo, e Doris Salcedo, da Colômbia. Além das vozes femininas, Hoor levou em consideração artistas com vivências distintas. “Trouxe também uma discussão intergeracional, tenho alguns artistas mais jovens e outros bem estabelecidos”, comenta. Mas não há favoritos. Al Qasimi se nega a eleger uma obra predileta. Diz que cada trabalho é importante para ela.
Sobre como vivenciar a atual bienal, que vai até 11 de junho, a curadora é direta: “É importante que as pessoas tenham tempo. Não é um festival para as pessoas virem e irem, não é uma celebração”. Ao citar o terremoto que afetou a Síria e Turquia, Hoor Al Qasimi reforça a mensagem que acabara de dar: “É muito importante que este seja um espaço de discussão, um espaço para pensar nas obras que você está vendo. Não é um espetáculo para vir e olhar; não é uma celebração.”
A Bienal de Sharjah, que completa 30 anos em 2023 — 20 dos quais Hoor está à frente do evento —, não busca uma resposta definitiva a questões apresentadas, como apontado na declaração curatorial. A intenção de Al Qasimi também não é de se posicionar como um guia. “Em vez de centrar qualquer voz curatorial singular, acredito que seria mais generativo abraçar coletivamente o espírito de ‘ser guiado’ — um pelo outro, por nossas solidariedades interculturais em constante evolução”, declara.
Ao concluir a entrevista, Hoor lembra que ao levar o pai — Xeque Sultan bin Muhammad Al Qasimi, membro do Conselho Supremo dos Emirados Árabes Unidos e governante de Sharjah — para Al Dhaid, um dos locais da Bienal, o líder ressaltou a importância de cada trabalho exposto à comunidade local. “[Cada trabalho] fala sobre lutas, sofrimento e a história das pessoas. Não em forma de vitimização, mas em uma forma de mostrar um espaço de solidariedade compartilhada, compreensão, e acho que há algo em se unir e contar histórias que você pode encontrar ressonância”, arremata a curadora.
Conexão Marrocos-Brasil
O Brasil também está presente na obra de Hassan Hajjaj. O marroquino, que contesta percepções do ocidente sobre a cultura árabe, trouxe o documentário “Gnawa Capoeira Brothahood”. A obra trata das semelhanças entre a capoeira e a gnawa – destacando a a origem compartilhada entre as práticas. Segundo a Bienal, o filme mostra contrastes e ao mesmo tempo uma ligação entre a capoeira e a gnawa que, apesar de separadas geograficamente, compartilham história e estética.
A Bienal de Sharjah 15 começou em 7 de fevereiro. O evento vai até 11 de junho no emirado de Sharjah. A entrada é gratuita.