Cairo – A nova configuração do cenário internacional e a emergência de novos pólos, tais como os BRICs, colocam o Brasil em uma situação de destaque e fazem com que o país possa exercer o protagonismo desejado no diálogo de culturas. A afirmação foi feita pelo secretário-geral da Academia da Latinidade e membro do grupo de Alto Nível da Aliança de Civilizações, o professor Candido Mendes.
Mendes deu entrevista exclusiva à ANBA durante o 20º encontro da Academia da Latinidade, que ocorreu esta semana no Cairo, e reuniu mais de 20 intelectuais renomados do mundo islâmico e de países ocidentais. Participaram do encontro também o Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança de Civilizações, Jorge Sampaio, e o ex-secretário das Nações Unidas, Boutros Boutros Ghali.
A Academia da Latinidade foi fundada há dez anos pelo intelectual brasileiro Candido Mendes com o objetivo de produzir instrumentos conceituais sobre a latinidade e sobre como ela pode contribuir para o diálogo entre o mundo islâmico e ocidental. Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Mendes:
ANBA: O que é exatamente a Academia da Latinidade e quais são seus principais objetivos?
Candido Mendes:A Academia da Latinidade é uma instituição universitária, acadêmica, que foi criada em 1998 com uma convergência de preocupações entre Frederico Mayor, que estava deixando a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Mário Soares, ex-presidente de Portugal, Gianni Vattimo, então membro do Parlamento Europeu. Conversamos, naquele momento, sobre a necessidade de desenvolvermos uma forma de diálogo com o mundo muçulmano, especialmente com o Irã. Depois da revolução do Aiatolá Khomeini, o Irã se encontrava privado do diálogo com o Ocidente. Começamos os trabalhos da Academia da Latinidade indo exatamente para este país.
A idéia era constituir esta academia com intelectuais para promover o diálogo desarmado entre o Ocidente e as outras culturas. Não era necessariamente um problema ligado ao Irã, nem mesmo ao mundo muçulmano, mas era uma questão de saber até onde o diálogo global deveria superar a visão ocidental da civilização. E isso levava necessariamente a uma luta contra todos os fundamentalismos. As reuniões foram organizadas, começaram a ser feitas desde então, duas ao ano, e estamos chegando hoje ao nosso décimo ano. Temos, via de regra, sempre uma reunião no mundo islâmico e uma na América Latina.
Em que medida, os trabalhos da Academia da Latinidade têm afetado a realidade, ajudado a melhorar o diálogo entre o Ocidente e o mundo islâmico?
A idéia fundamental é, de fato, abrir o diálogo dentro de alguns conceitos. O primeiro é que a latinidade é o soft side of the West (o lado suave do Ocidente). Segundo, de realmente prover uma conversa que seja, não só entre o Ocidente, o mundo islâmico e o extremo latino-americano, mas também dentro dos próprios extremos. Quer dizer, no interior do próprio mundo muçulmano e também do próprio mundo latino-americano.
Nós nos preocupamos muito em variar o número de seus membros e ampliar a qualificação do diálogo. Por isso hoje nós conseguimos ter, nas conferências, participantes de todos os países da América Latina. É verdade que não tivemos nenhum guatemalteco, nem também, para ser preciso, um salvadorenho. Mas nos preocupamos em trabalhar a visão de um mundo que supere conflitos que cada vez mais estão bloqueando o diálogo internacional.
O senhor é brasileiro e foi membro do grupo de Alto Nível da Aliança de Civilizações das Nações Unidas. O Brasil apresenta hoje ao mundo a própria realidade como um exemplo de convivência entre diversas culturas e religiões. O que o Brasil pode oferecer, em sua opinião, para a aproximação entre as culturas ocidental e árabe-muçulmana?
O Brasil está fazendo isso, sendo já um intérprete transcontinental deste diálogo. O Brasil é um país que está se destacando, cada vez mais, na América Latina e é um dos protagonistas do chamado grupo dos BRICs, onde o seu desenvolvimento, a sua escala internacional se compara com a da China, da Índia, da África do Sul e da Rússia.
E o que torna possível no Brasil esta possibilidade de convivência, respeito mútuo ou falta de dificuldades de comunicação entre as diversas culturas e religiões?
Esta questão vem do fato que o Brasil foi poupado pela sua inércia histórica. O Brasil é um país de uma subcultura notória, onde, efetivamente, as elites viviam de uma maneira mimética e assediadas por esta subcultura. Nós somos um país que corresponde ao conceito do Henri Michaux: ‘os países coloniais, sempre em reflexo, nunca em reflexão’. Esta situação muda hoje, não pelas elites, mas sim pela extraordinária tomada de consciência daqueles que são destituídos de tudo, e que, através da possibilidade de realizar um projeto político, chegaram a ganhar uma consciência que não tem nada mediado pelas elites. É a consciência popular do que eu chamaria de povo de Lula.
Este é um fenômeno bastante inédito do desenvolvimento latino-americano. E este é um movimento que está sendo o objeto, talvez, da diferença dentro disto tudo. Não sabemos o que poderá acontecer, mas a verdade é que hoje o Brasil é um país que tem esta condição de protagonista porque tem uma legítima tomada de consciência popular, ou digamos, dos representantes dos antigos extratos marginalizados do contexto coletivo.
Segundo, pela própria enormidade e pela inexistência de conflitos fronteiriços, o Brasil é o país do ‘grande vazio histórico’. Ele foi poupado de todas as formas de guerras, de conflitos e de lutas. A nossa única guerra foi a de defesa contra Madame Lynch. Ou seja, a senhora que empolgou Solano Lopez e achou que ele deveria repetir no Brasil a aventura napoleônica. E o Paraguai declarou guerra aos três países que o impediam de chegar ao oceano Atlântico: a Argentina, o Uruguai e o Brasil. Mas fora esta guerra, o Brasil nunca teve a experiência de conflitos levado à beligerância com seus vizinhos.
Terceiro, o Brasil é um país, que, pela sua dimensão continental, pela sua auto-suficiência de recursos básicos, agora expandidos pela descoberta das jazidas do pré-sal, tem autonomia econômica de se desenvolver em função do seu mercado interno. Em tudo isso o Brasil se distingue do resto da América Latina e será, cada vez mais, um país não latino-americano.
A aproximação do Brasil com os países árabes contribui ou traz algo de positivo para o trabalho da Academia da Latinidade?
Esta aproximação leva o Brasil a uma posição de não alinhamento fatal com a América Latina, no futuro das políticas globais. Segundo, ela leva a uma revalorização importante de todas as nossas raízes africanas. O ‘Brasil Elite’ sempre desdenhou ou desclassificou a contribuição africana para a formação de nossa cultura. Era apena uma falácia dizer que o Brasil aceitava a tese de Olavo Bilac, que dizia que o Brasil é um fruto amoroso de três raças tristes. O Brasil não assumiu a sua africanidade antes do fim do século passado. E o Brasil também mistificou uma importância índia que não existia. Então o balanço entre desvalorizar o negro e supervalorizar o índio nos deu esta ambigüidade na representação nacional. Esta representação que agora está se tornando nítida. O Brasil é um país que vai enegrecer e será o país dos mulatos. Ele não tem nada de embranquecer, como se pensava, no mundo da sociedade elitista.
Na lógica da formação de uma nova configuração do cenário mundial, o que significa a aproximação entre a América do Sul e países árabes? Poderia se falar da eventualidade da criação de um eixo do sul que possa ter peso nas relações mundiais?
Eu não acredito mais, neste momento, em similares geométricos que falem em eixos e que permitam coligações do Sul. Isso não vai haver. Nós vamos ter sim um mundo onde a redução da influência dos impérios, sobretudo a partir da extraordinária era Obama, terá como contrapartida, a aparição de outros centros de poder que são os dos BRICs. E o futuro vai depender da organização dos BRICS entre si, que necessariamente será precária porque estes são todos países continentais voltados para si e onde a globalização terá um papel precário.
E esta transformação resultante da era Obama e redução da influência de hegemonias e impérios e a emergência dos BRICs poderia trazer a experiência de um mundo mais tolerante, onde o diálogo e o entendimento entre as culturas e religiões poderiam ocorrer com mais facilidade?
O fato de ser um mundo pluralista evidentemente tem como pressuposto a tolerância, mas não necessariamente a paz. Nós podemos ter um mundo de coexistências fechadas, sobretudo da parte dos enormes países de mercado interno. E ao contrário dos países expansionistas, a China e a Índia são bons exemplos disso. Estes são países pacíficos pela própria natureza. Muito ao contrário do mundo Ocidental, do mundo eslavo e mesmo do mundo árabe.
Mas quanto à questão da tolerância, poderia se dizer que existe hoje uma luz no fundo do túnel em relação à melhora da condição do diálogo e do respeito entre os povos?
Isso me parece uma expectativa, digamos assim, de boa vontade internacional. A mesma perspectiva que pensava que os ricos iriam alimentar os países pobres e a mesma que achava que o desenvolvimento seria ganho por uma auto-sustentabilidade, ou que pensava que as organizações internacionais poderiam desconstituir a polarização entre os ‘have’ e os ‘have not’ internacionais. Mas é evidente que esperança não faz mal a ninguém. E necessariamente, dentro disso, não se pode reduzir o coeficiente voluntarista e ingênuo que esta perspectiva tem. Normalmente o que nós vamos ter é uma coexistência destes países, cada vez mais orientados para si mesmos.
E quanto à Aliança de Civilizações das Nações Unidas? Como esta iniciativa pode contribuir para melhorar a realidade em termos de diálogo e como o Brasil se enquadra nela?
A Aliança de Civilizações é uma perspectiva não hegemônica de entender o desenvolvimento internacional. Ela nasceu de dois países mediterrâneos como a Espanha e a Turquia e hoje em dia tem um terceiro sócio, que é o Brasil. O Brasil está trazendo esta perspectiva do quadro mediterrâneo ao quadro atlântico e acha que a Aliança de Civilizações terá muito a ver com o fato de que ela não começa com o centro e o eixo do centro, ainda que isso possa se modificar com a era Obama, mas da possibilidade das nações antigamente periféricas entenderem o que elas têm de comum e o que elas têm em termos de diferença.