São Paulo – Uma pesquisadora brasileira está fazendo estudos aprofundados e lançando novo olhar sobre a história de uma dinastia de sírios que governou Roma entre os anos de 193 a 235. A investigação é levada adiante por Semíramis Corsi Silva (foto acima), docente do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. O foco principal da pesquisa é o imperador Heliogábalo, que esteve à frente do poder romano por cerca de quatro anos, de 218 a 222.
A brasileira quer compreender as representações e as práticas político-administrativas, religiosas e elementos de gênero e identidade cultural do imperador. “Era um jovem sírio, membro da elite de uma cidade antiga chamada Emesa”, afirmou Silva à ANBA por e-mail. Emesa ficava onde atualmente se encontra Homs, na Síria. Heliogábalo governou Roma dos 14 aos 18 anos e foi membro da dinastia dos Severos.
A inserção dos sírios no poder romano se deu por meio de Júlia Domna, síria que se casou com o general romano Septímio Severo, que acabou subindo ao trono como imperador romano. Os dois filhos de Júlia com ele foram imperadores, mas um golpe tirou a família Severo do poder por curto tempo. O retorno da dinastia se deu por outro golpe, arquitetado pela irmã de Júlia, chamada Júlia Mesa, que colocou seu neto, Heliogábalo, no trono.
“Heliogábalo, então com 14 anos, é elevado a imperador romano sem nunca ter estado em Roma. Portanto, além da transmissão do poder ter sido via sua tia-avó, Júlia Domna, ou seja, de forma matrilinear, a importância de sua avó Júlia Mesa e de sua mãe, Júlia Soémia, durante seu governo, foi muito forte”, relata a pesquisadora. Na época, a Síria era província romana.
Silva concluiu a primeira parte da pesquisa e começou uma segunda fase. Na primeira, o foco foi saber o que os greco-romanos escreveram sobre Heliogábalo. “Foi bem negativo, justamente por ele ser sírio e frisar estes costumes quando chega em Roma como imperador, deixando de lado elementos importantes da ordem imperial romana”, afirma. Heliogábalo elevou membros da elite síria a altos postos do poder imperial, o que deixou as elites de Roma descontentes e resultou em uma imagem negativo nos textos, segundo a percepção da pesquisadora.
A segunda parte da pesquisa vai analisar as práticas do imperador, principalmente o cruzamento da sua religiosidade com questões de gênero e corpo. “Heliogábalo era sacerdote de um deus solar chamado Elagabal e seus ritos envolviam certas práticas no corpo, bem como elementos de sexualidade e certas vestimentas que parecem ter chocados os escritores que nos deixaram testemunhos sobre o imperador, que as viam como femininas”, diz.
O nome Heliogábalo, aliás, vem da época anterior ao governo de Roma e da ligação do sírio com o culto a Elagabal. Ele ser chamado dessa maneira mostra como os romanos o viam especialmente marcado pela fervorosa religiosidade, segundo a historiadora. O nome de nascimento de Heliogábalo era Vário Avito Bassiano e, como imperador, passou a se chamar Marco Aurélio Antonino.
Viés romano da história
A brasileira questiona se práticas do imperador apontadas por inimigos, e usadas contra ele de forma pejorativa e exagerada, existiram como descritas. O romano Dião Cássio mencionou que Heliogábalo queria fazer cirurgia nas partes íntimas, o que Silva entende que poderia ser um rito de iniciação de sacerdote no culto a Elagabal. “Não há como termos certeza também se as roupas que Heliogábalo como sacerdote de Elagabal usava eram femininas para ele ou se, na verdade, foram lidas como femininas pelos escritores que lhe eram inimigos, justamente por serem diferentes das roupas sacerdotais greco-romanas, e com o intuito de criticar o imperador”, afirma.
Silva percebe uma tendência nos textos da época. “Houve uma forte oposição a esse imperador por suas medidas político-administrativas, mas também por sua carga cultural siríaca tão diferente aos olhos dos gregos e romanos mais tradicionais. Tais escritores, assim, imbuídos de um olhar aristocrático e conservador, irão cruzar elementos de gênero e identidade cultural oriental/siríaca para criticar Heliogábalo”, afirma.
A historiadora afirma que além de ser a primeira dinastia com imperadores provinciais sem vínculos familiares com Roma e a primeira de origens orientais, um dos maiores diferenciais da dinastia dos Severos foi o poder feminino das mulheres sírias. Júlia Domna se destacou como patrona dos intelectuais, foi responsável pelas correspondências do filho imperador e intermediária do acesso dos aristocratas aos imperadores. Júlia Mesa, por ter netos imperadores muito novos, ficou à frente de tomada de decisões, assim como tiveram destaque as mães do imperador Heliogábalo e do imperador Severo Alexandre, que assumiu o trono após Heliogábalo e ficou até 235.
Silva é formada em História, tem mestrado e doutorado na área pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), além de estágio de pesquisa (doutorado-sanduíche) na Universidad de Salamanca, na Espanha, e estágio na Bibliothèque Gernet-Glotz – AnHiMA, na França. Ela começou a ler sobre a dinastia dos Severos no doutorado, por meio da biografia de Apolônio de Tiana, escrita por um sofista grego Filóstrato, amigo pessoal de Júlia Domna. O assunto, porém, não foi explorado no doutorado, mas a deixou intrigada. Quando começou a trabalhar como docente de História e pesquisadora da UFSM, em 2015, ela resolveu estudar o imperador.
Uma paixão pessoal
Nascida na cidade mineira de São Sebastião do Paraíso, Silva não tem ascendência árabe e nunca esteve na Síria. Esse último, porém, é um sonho que pretende realizar em breve. “Às vezes brinco com meus alunos e colegas que devo ter alguma ligação espiritual, pois meu nome, Semíramis, é o nome que os gregos chamavam uma rainha lendária da Assíria, povo que conquistou um vasto império em grande parte do atual território árabe e que, inclusive, legou o nome de Síria para a região de Heliogábalo e para o atual país. Brinco que minha mãe, quem escolheu meu nome, deve ter sido inspirada por essa paixão que seria desperta em mim um dia”, fala.
A rainha Semíramis está sempre aparecendo na documentação que a mineira estuda sobre a dinastia dos Severos. A pesquisadora sabe que essas não são ligações reais em termos genealógicos com o mundo sírio e árabe antigos ou contemporâneos. “Mas demonstram como levo comigo o tempo todo, ainda que como uma coincidência, a história dessa região do Oriente que pretendo continuar estudando de forma séria e comprometida”, afirma.
A pesquisadora acredita que os relatos sobre a história dos povos chamados de orientais que existem, desde a Antiguidade até os dias atuais, passaram por muitos problemas. “Na Antiguidade tivemos as construções dos escritores gregos e romanos sobre os povos bárbaros, entre eles os orientais, inventando seus ‘outros’ de forma antagônica, estereotipada, exótica e essencializante”, afirma. “Na contemporaneidade foi dado muito peso a histórias vindas de gregos e romanos por vermos neles o ‘berço do Ocidente'”, segundo ela.
“Além disso, na contemporaneidade, as histórias dos diferentes povos chamados de orientais têm sido contadas pelo filtro do Orientalismo, um saber sobre o Oriente criado no Ocidente como discurso de poder e dominação”, afirma. Segundo Silva, tal tipo de saber precisa ser denunciado por estudiosos que carreguem o que o Edward Said chamou de Humanismo, que, resumidamente, é o comprometimento em desconstruir fórmulas prontas e redutivas. Said foi um dos mais importantes intelectuais árabes. “Essa é minha ligação com a Síria, uma paixão pessoal e um comprometimento intelectual em contar sua história de forma crítica, responsável e humana”, afirma.