São Paulo – Duas brasileiras que moram na Síria contaram à ANBA como a guerra afetou suas vidas. Ambas vivem com seus maridos e filhos, Marcela Jacques em Damasco e Renata Isa em Homs, e estavam no país quando os conflitos começaram em 2011. As duas são amigas.
Em série sobre a Síria que foi ao ar recentemente, a agência publicou partes dos depoimentos delas, em reportagens sobre Damasco e Homs, e agora revela mais detalhes.
Após conhecer um rapaz sírio pela internet e manter conversas online com ele durante um ano, a recifense Marcela decidiu ir ao país árabe no final de 2008 para conhecê-lo pessoalmente. “Deu certo e fiquei por aqui”, disse. “Em 15 dias nos casamos e em dois meses eu estava grávida, não é ‘habibi’?”, comentou bem-humorada com o marido, que estava ao seu lado enquanto conversava com a reportagem por telefone. “Habibi” significa “meu querido” em árabe.
O casal tem dois filhos, uma menina de 10 anos e um menino de um ano e meio. O marido trabalha numa embaixada em Damasco e Marcela dá aulas de português. Na foto acima, ela tira uma selfie com alunos.
A curitibana Renata também se casou e teve dois filhos, mas quando morava no Brasil. Hoje os meninos têm 08 e 14 anos. A família se mudou para Homs no início de 2011. Estavam ocorrendo os protestos da chamada Primavera Árabe em vários países da região, mas a situação na Síria ainda não havia escalado para o conflito armado.
“Meu marido é sírio de Homs e queria voltar para a terra dele, e queríamos criar as crianças num lugar mais seguro, sem tanta criminalidade”, afirmou ela. “Não sabíamos o que ia acontecer, até onde [a situação] ia chegar”, declarou. Renata é dentista, e seu marido, engenheiro civil.
O que fazer?
O cenário foi piorando e as duas brasileiras e suas famílias se viram diante de um dilema: ficar ou partir?
“Quando começaram mesmo os problemas, em 2012, com bombardeios na cidade, eu fiquei assustada”, contou Marcela. Embora Damasco em si não tenha sido palco de combates, nos arredores da capital ocorreram conflitos intensos, inclusive com o disparo de projéteis em direção ao centro da metrópole.
“Foi muito complicado, havia tanques nas ruas, helicópteros e aviões de militares sobrevoando, os rebeldes cercaram Damasco, estavam nos subúrbios”, relatou Marcela. Em pelo menos duas ocasiões ela estava próxima de locais onde caíram bombas.
Em Homs, ao contrário, os combates ocorreram na área central da cidade. Embora o bairro onde mora não estivesse no front, Renata destacou episódios assustadores, como a queda de um morteiro no estacionamento de um prédio próximo, uma explosão numa casa nas vizinhanças, atiradores de elite disparando do alto de um edifício nas redondezas, e mortes.
A família decidiu sair de Homs e se mudou para a casa dos sogros da brasileira, que moram nas proximidades de Tartus, cidade que fica na faixa mediterrânea da Síria, região onde não correram combates. “Muitas famílias mudaram para esta região, quem tinha condições foi”, disse Renata.
Marcela, por sua vez, decidiu voltar ao Brasil com a filha – o menino ainda não era nascido -, enquanto o marido ficou em Damasco. Ela permaneceu no País ao longo de 2013. A retomada do controle total da periferia da capital só foi anunciada pelo exército sírio em maio de 2018.
Renata ficou na região de Tartus por um ano e meio. “Até as coisas se acalmarem”, afirmou. As áreas mais centrais de Homs só foram liberadas em meados de 2014.
Além da violência, Renata relatou que os produtos ficaram mais caros, faltava energia elétrica e combustível, inclusive para calefação. O racionamento de combustíveis ainda segue na Síria.
E agora?
“Para mim foi uma grande decepção, pois [antes da guerra] eu vinha para cá a passeio a cada dois anos e achava tudo maravilhoso, e por isso resolvi me mudar”, declarou. “Larguei tudo [no Brasil] e aí começou a guerra, fiquei sem saber o que fazer”, acrescentou Renata, que é filha de sírios.
Hoje, no entanto, ela está de volta atendendo em seu consultório em Homs.
Marcela também relatou os constantes apagões e a escassez de combustíveis, e ainda de outros produtos. “Não passava um dia sem faltar luz”, disse. Ela contou que uma vez grupos armados tomaram conta de um reservatório de água da cidade. “E a libra síria perdeu muito valor”, ressaltou.
Atualmente a moradora de Damasco dá aulas para pessoas que trabalham em embaixadas, sírios que têm nacionalidade brasileira, mas não falam português, empresários que fazem negócios com o Brasil e gente interessada em aprender línguas. Ela participa também de iniciativas beneficentes capitaneadas pela embaixatriz do Brasil em Damasco, Mercedes Pitaluga, que reúne integrantes da comunidade brasileira local em encontros periódicos.
Marcela, porém, não quer mais ficar na Síria.