São Paulo – O paulistano Luiz Henrique Souza se converteu ao Islã há seis anos. Filho de cristãos nordestinos, ele começou a praticar a religião em 2013, enquanto cursava a graduação em História na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Franca. “Comecei a estudar com mais profundidade, como um processo de afirmação de quem eu sou e do que acredito”, disse à ANBA. “E por causa de Malcolm X, que era muçulmano; também passei a conviver com muçulmanos morando na periferia de Embu das Artes”. Aos 26 anos o professor, historiador e artista fará a peregrinação a Meca, o Hajj, este ano. Malcolm X foi um dos mais importantes militantes norte-americanos na luta contra o racismo nas décadas de 1950 e 1960.
Em seu processo de conversão, Souza conta que passou a assumir uma série de práticas e condutas, em ritmo gradual, num equilíbrio entre os estudos do Alcorão nas mesquitas de Santo Amaro e de Embu das Artes. Para se converter ao Islã, segundo ele, basta pronunciar a frase em árabe: “Não existe nenhuma divindade além de Deus, e testemunho que o profeta Muhammad (Maomé) é o seu mensageiro”, contou. “Mas é preciso acreditar”, enfatizou. Para pedir o visto para ir a Meca, na Arábia Saudita, Souza solicitou um certificado de conversão ao islamismo, que foi feito por um xeique, autoridade religiosa muçulmana. Em Meca, só pode entrar quem for muçulmano.
Souza descobriu o trabalho social da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras), que oferece bolsas para o Hajj, há cerca de três anos, se inscreveu, ficou na lista de espera e foi selecionado para ir este ano. “Comecei a me preparar para os rituais e entender o significado da peregrinação, tenho uma noção, uma ideia do que é; acredito que seja muito forte, uma experiência única e pessoal, muito individual para cada um”. Para Souza, esta viagem é a única que importa na vida de um muçulmano. “É a maior peregrinação do mundo, e o fato de estar lá implica na recordação material do monoteísmo, é como voltar à base da religião, e também uma manifestação da força e da diversidade do Islã”, declarou. “Vou com o olhar religioso, mas também com o histórico, pela minha formação. Todas as pessoas que estão ali são convidadas por Deus, tem muita gente que se programa e não consegue ir, existe um chamado”, acrescentou.
Tanto por questões acadêmicas quanto religiosas, ele conta que em suas aulas de história no Colégio 24 de Março tenta abordar a história islâmica e questões que envolvem o Oriente Médio, com informações baseadas em fatos. “Acredito que, assim, acabo ampliando a visão de mundo dos meus alunos e indiretamente desconstruindo preconceitos”, afirmou.
O colégio, segundo ele, tem uma boa relação com a comunidade islâmica da região, pois fica ao lado da Mesquita Santo Amaro. Já a Mesquita Sumayyah Bint Khayyat, de Embu das Artes, da qual é membro, tem para ele um caráter especial. “Porque foi fundada por brasileiros convertidos ao Islã em um lugar muito pobre, uma região de periferia, e foi nela que eu pude ter uma sociabilidade melhor. É uma alegria pessoal ir para o Hajj, mas é uma alegria também para a minha comunidade”, declarou.
Experiência feminina
A auxiliar administrativa Carla Sanches Taky Eldin, de 42 anos, se converteu há 19 anos e fez a peregrinação a Meca em 2012 com o marido. Ela contou um pouco sobre a experiência da mulher muçulmana no Hajj. A peregrinação, segundo ela, é feita em conjunto, e existe separação entre homens e mulheres somente nos quartos de hotel e, como já é da tradição islâmica, dentro das mesquitas. “Não senti nenhuma separação, pelo contrário, senti uma proteção e um tratamento preferencial para as mulheres”, disse à ANBA. As mulheres geralmente usam a “abaya”, uma veste comprida de cor preta, ou roupas de reza branca, e o véu, ou “hijab”, contou Eldin. “No Dia do Sacrifício, os homens raspam o cabelo e as mulheres cortam as pontinhas”, outro diferencial da peregrinação feminina.
“Foi uma experiência indescritível! É uma emoção única poder estar em contato mais próximo com Deus. São várias passagens de pura emoção, Meca é sem dúvida um espetáculo de grandeza: a Caaba, a primeira casa na Terra, dar as sete voltas que levam de duas a três horas, com milhões de pessoas, todas em um circuito perfeito. Amei tudo que meus olhos viram, é a verdadeira fé em um lugar, o único e verdadeiro Islã”, declarou.
Árabe muçulmano
O calor, a tranquilidade, a segurança, as milhões de pessoas e a infraestrutura foram fatores que chamaram a atenção do egípcio naturalizado brasileiro Amro Awad durante sua peregrinação no ano passado. Awad tem 28 anos e está no Brasil há sete, e é responsável por assuntos consulares no Consulado dos Emirados Árabes Unidos em São Paulo. “Foram mais de dois milhões de pessoas visitando os locais sagrados, com temperatura entre 48 e 52 graus, mas você acostuma com o calor, e praticamente todo lugar tem ar condicionado, as mesquitas, os hotéis, os banheiros, e do lado de fora, guarda-sóis gigantes e vapor de água para refrescar”, contou. Awad pôde fazer o Hajj com o auxílio de uma entidade beneficente de Dubai ligada à Fambras.
Awad afirmou que na peregrinação fazem tudo de acordo com o que aconteceu com o profeta Abraão. Ele deu as sete voltas na Caaba mas não conseguiu chegar na pedra preta, aquela que fica no centro, quase impossível de alcançar no meio de tanta gente. “Lá somos todos iguais, vestindo o ‘ehram’, como se fosse uma toalha grande e branca dividida em duas partes, uma cobrindo as pernas, e a outra, o tronco”, explicou. Deu as sete voltas entre as duas montanhas. No acampamento em Mina, ficou por algumas horas e retornou ao hotel. “Não é obrigatório passar a noite lá, é necessário assistir à madrugada, e vai de cada um quanto tempo quer permanecer”, disse. Fez o ritual do apedrejamento do demônio e, no Dia do Sacrifício, fez a doação de um carneiro, raspou o cabelo e tirou a roupa branca. “Tem que ser nessa ordem”, explicou. “Foi uma experiência incrível passar por tudo isso, viver isso que eles viveram, não dá para imaginar estar neste lugar sagrado. Fui onde Ismael pisou na Caaba, lá eu consegui chegar”, contou.
Segundo Awad, ao entrar na Arábia Saudita, um fiscal do Ministério do Hajj e Umrah retém os passaportes dos peregrinos do grupo e só devolvem no final da viagem. “Por uma questão de organização e segurança, acredito, para não haver conflitos”, disse. Umrah é uma peregrinação menor, feita fora do período do Hajj.
Awad ficou impressionado com a infraestrutura do país para receber os peregrinos. “Nos muros do apedrejamento, fizeram uma obra de mais de US$ 5 bilhões para construir três torres para haver mais espaço e ficar tudo mais organizado, porque havia muitos acidentes”, contou. Ele mencionou também a obra do trem de alta velocidade que leva os peregrinos de Meca a Medina, cidade que não faz parte do Hajj, mas que muitos muçulmanos visitam após a peregrinação, pois é lá que fica a mesquita do profeta Maomé. A inauguração do trem foi em outubro do ano passado, e ele viaja a 300 quilômetros por hora. A obra custou cerca de US$ 1,8 bilhão.
Água de Zamzam
Carla Eldin e Amro Awad beberam da água sagrada, a água de Zamzam, que abastece as mesquitas de Meca e Medina em bebedouros para os peregrinos. É possível levar até cinco litros da água para casa no avião. “No aeroporto tem uma loja que vende a água para os peregrinos levarem para casa”, contou Awad.
“A água sagrada atende a súplicas. O que você pede, acontece, e também tem propriedades de cura de doenças dermatológicas”, disse Awad. Ele não quis contar o que pediu, mas contou que “geralmente se pede que Deus nos guie para o fim da reta e que não desvie do caminho certo, e que proteja o coração e o corpo físico”.
Medina
Medina foi mencionada pelos entrevistados como um local que, apesar de não ser parte do Hajj, tem uma energia especial. “Visitar a mesquita do profeta Muhammad, em Medina, foi só lágrimas de agradecimento a Deus por me dar a oportunidade de estar ali, é uma mesquita branca e dourada, uma energia nunca sentida fazer a oração ali com milhares de pessoas de várias culturas e nacionalidades, todos juntos para uma única missão!”, contou Eldin.
Apesar do calor de 52 graus, mais quente que Meca, que variava de 48 a 50 graus durante o dia, Awad relatou ter vivenciado “uma tranquilidade que não existe no mundo”.
A generosidade foi outro fator que impressionou Awad em sua viagem religiosa. “O povo é muito generoso, em Meca e Medina, tem pessoas desconhecidas na rua oferecendo água e tâmaras, distribuindo para todo mundo, para ajudar os peregrinos, a generosidade das pessoas que vivem lá me chamou a atenção, eles oferecem carona em seus carros, são voluntários, mesmo.”
O que é o Hajj
O quinto pilar sagrado do Islã é o Hajj, peregrinação a Meca e Mina entre o oitavo e o décimo terceiro dia do último mês do calendário islâmico, o Dhu al-Hijja. A peregrinação deve ser feita pelo menos uma vez na vida de muçulmanos que tenham condições financeiras e físicas para realizar a viagem.
A ANBA conversou com o xeique egípcio Khaled Taky Eldin para conhecer os processos e a história da peregrinação. Khaled é secretário-geral do Conselho Superior dos Teólogos e Assuntos Islâmicos do Brasil e já serviu em mesquitas no Brasil e na América Latina – e é marido de Carla Eldin.
O primeiro pilar da religião islâmica é a fé em um Deus único; o segundo, a oração; o terceiro, o Ramadã, jejum do nascer ao pôr do sol durante o nono mês do calendário islâmico; o quarto pilar, a caridade; e o quinto, o Hajj.
Meca, segundo Khaled, é a casa sagrada de Deus, e foi a primeira casa de Deus construída na Terra. O profeta Abraão foi enviado para lá com sua primeira esposa, Hager (ou Hagar), e seu filho ainda bebê, Ismael. Abraão deixou a mulher e o filho em Meca com um pouco de água e comida. Quando acabou a água, Hagar saiu para procurar água entre as montanhas de Al Safa e Al Marwa, segunda parte da peregrinação, e encontrou o poço de Zamzam, com a água sagrada, do lado da Caaba.
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A viagem com o intuito de realizar o quinto pilar do Islã é, segundo Khaled, um pedido de perdão e uma limpeza espiritual, um momento de encontrar outros irmãos, em que todos estão em posição de igualdade, com roupas brancas, sem bolso, sem costura, de chinelo.
O primeiro passo da peregrinação dura dois a três dias em Meca, para a visita a mesquita sagrada e as sete voltas em torno da pedra preta da Caaba, uma homenagem à primeira casa sagrada para adorar um deus único. Bebe-se então a água de Zamzam, e se faz a oração ou súplica.
Depois vem a marcha entre as duas montanhas, Al Safa e Al Marwa, o caminho que Hagar fez para procurar água. São sete voltas também, cerca de quatro quilômetros. “Deus enviou a água a Hagar, uma mulher decente, forte, que confiou em Deus, e nós lembramos esse esforço dela”, explicou o xeique.
No oitavo dia do Dhu al-Hijja, dois dias antes da Festa do Sacrifício, os peregrinos vão acampar em Mina, cidade próxima a Meca, onde ficam por uma noite. “Em seguida, vão ao Monte Arafat, onde ficam um dia inteiro, para que Deus perdoe os seus pecados e os abençoe”, contou.
Retorna-se então a Mina, passando por Muzdalifah, onde parou o profeta Maomé. Os peregrinos juntam 21 pedras e fazem o ritual do apedrejamento em três muros, um pequeno, um médio e um grande, atirando sete pedrinhas em cada um. Este gesto simbólico remete ao sonho que o profeta Abraão tem e recebe como uma ordem de Deus ter que sacrificar o filho Ismael, já com 15 anos. “No caminho do sacrifício, satanás aparece para Ismael, depois para sua mãe, depois para o profeta, e os três rejeitam o diabo atirando sete pedras nele cada um”, disse Khaled.
“Depois dessa provação, Deus envia um carneiro enorme para ser sacrificado no lugar do filho Ismael, através do arcanjo Gabriel, e a fé deles é recompensada”, contou o xeique. Por isso, no Dia do Sacrifício os peregrinos sacrificam um carneiro. Hoje, há locais especializados que fazem o sacrifício e doam a carne para países vizinhos.
Em seguida, os peregrinos cortam o cabelo, tiram a roupa branca e retornam a Meca para dar mais sete voltas na Caaba e fazer a marcha entre as montanhas Al Safa e Al Marwa novamente. Voltam para Mina e fazem um novo apedrejamento. Essa repetição dos processos ocorre, segundo Khaled, “para mostrar fé e perdão, demonstra que se está no caminho de Deus, contra o desejo e os maus pensamentos”.
No dia 11, os peregrinos retornam a Meca para terminar a peregrinação, e a maioria segue viagem para Medina, que é considerado um local sagrado por abrigar a mesquita do profeta Maomé.
Segundo o xeique Khaled, cada oração em Meca equivale a cem mil orações, e em Medina, a mil orações. “[Quem fizer] vai receber muita recompensa de Deus”, finalizou.
Dados
No ano passado, Meca, a cidade sagrada do Islã, na Arábia Saudita, recebeu quase 2,4 milhões de peregrinos durante o Hajj, de mais de 100 países. A data da maior peregrinação do mundo varia de acordo com o calendário lunar ou islâmico, e este ano, o Hajj ocorrerá entre 09 e 14 de agosto.
A população muçulmana no mundo é de 1,8 bilhão de pessoas, cerca de 24% do total, e estima-se que até 2060 este número aumente em 70%, para 3 bilhões. Os dados são de relatório da Thomson Reuters de 2017.
No Brasil, segundo dados do Censo do IBGE de 2010, a população muçulmana tem pouco mais de 35 mil adeptos. Não há dados oficiais mais recentes, mas o presidente da Fambras, Ali Zoghbi, estima que o número esteja próximo a um milhão de muçulmanos. Destes, cerca de 200 vão ao Hajj a cada ano – entre brasileiros, árabes e latino-americanos -, de acordo com a agência de turismo islâmica Al Hidayah, que faz pacote para o Hajj no País.
Como viajar do Brasil
Os proprietários da Al Hidayah são o casal Sheikh Yasser e Manal Hamed. Hamed já foi professora de árabe e atualmente se dedica à agência, e coordena o grupo de mulheres que vão à peregrinação. A agência voltada ao turismo religioso leva grupos para o Hajj há 19 anos. Ela vai há 13 anos seguidos para as cidades sagradas do Islã. A síria está há 20 anos no Brasil, e fala português, árabe, espanhol e inglês.
O pacote inclui transporte aéreo, vistos e exames médicos e estadia em Istambul no último dia. Hamed disse já ter 165 passaportes confirmados para a peregrinação deste ano. Ela estima que deva chegar a 200.
Segundo a proprietária, o pacote para o Hajj saindo de São Paulo custa US$ 6.900 (cerca de R$ 26.000), incluindo transporte aéreo de Turkish Airlines, com escala em Istambul, até o aeroporto de Jeddah, na Arábia Saudita, com ônibus para Meca, a cerca de 90 quilômetros. Transporte de ônibus entre os locais de peregrinação, hotéis em Meca e Medina (após o Hajj), uma noite em Istambul no retorno e duas refeições ao dia.
Para fazer a viagem, é preciso entrar com um pedido de visto, que segundo Hamed é concedido cerca de dois dias antes da viagem. A agência de turismo facilita todos estes procedimentos e taxas. É necessário também fazer um exame médico antes de viajar, para atestar boa saúde para realizar a peregrinação.
A Al Hidaya leva grupos de 150 a 200 pessoas para Meca a cada ano. Destes, cerca de 90 são mulheres. Segundo Hamed, a maioria delas tem mais de 60 anos e vai desacompanhada – porém com a autorização de um homem da família, marido, pai ou irmão – e as mais novas geralmente vão acompanhadas por marido ou irmão. Para ir desacompanhada é preciso ter mais de 45 anos. Metade do grupo é do Brasil, mas há muitos peregrinos da Argentina, Chile, México e República Dominicana, segundo Hamed.