São Paulo – Quando chegou em Porto Alegre, em 1923, Raphael Kalil DabDab já era um experiente alfaiate, mesmo com seus 23 ou 24 anos. Logo inaugurou uma alfaiataria na antiga Rua da Ladeira (atual General Câmara). Deve ter percebido uma imensa demanda, dele mesmo e de seus pares, por tecidos nobres e variados e, assim, a alfaiataria se transformou em uma loja focada em servir aos alfaiates. Na década de 1940, a loja se mudou para a tradicional esquina da Rua Voluntários da Pátria com a Praça Parobé, no coração do centro histórico de Porto Alegre.

“Não havia as grandes lojas de departamentos e os magazines como os de hoje”, conta o administrador da Dabdab, Sérgio Martins, o funcionário mais antigo da loja, que trabalha há 40 anos na empresa. “E, durante muito tempo, boa parte das pessoas dependiam do alfaiate para fazer suas roupas sob medida”. Com os alfaiates em extinção, a loja passou a atender novos públicos, como confecções e costureiras (essas nunca saíram de moda).
Raphael DabDab teve seis filhos. Destes, Elias e Kalil tocaram o negócio, sendo que este último comandou uma filial que tinha na Rua dos Andradas durante trinta anos (1962-1992). Num dado momento, Elias comprou a parte dos irmãos. Como não teve filhos, hoje a loja é herança de sua companheira, que está na casa dos 90 anos. E, desde a morte de Elias, em 2016, é o próprio Sérgio quem assumiu a administração.

Sérgio, que começou a vida profissional em uma relojoaria (outra área que praticamente se extinguiu) aos 13 anos, trabalhou também como contínuo em bancos. “Naquele tempo era só atravessar a rua que chovia emprego”, conta. Chegou na Tecidos Raphael Dabdab para ajudar na contabilidade e sem saber nada sobre tecidos. Hoje fala com desenvoltura sobre o linho, a casimira, lãs frias e tricoline. Sabe o que vem de onde e lamenta que o Brasil já não produza tecidos como no passado.
Aos 68 anos, casado com uma descendente síria (uma coincidência, pois já estava casado com ela antes de entrar na loja), e um filho, Sérgio já está aposentado, mas, mesmo sabendo das dificuldades enfrentadas no setor, ainda acredita no potencial da loja. “Elias não era muito chegado às tecnologias, foi uma luta para fazer com que ele comprasse um computador para a contabilidade, mas hoje já estamos vendendo por WhatsApp”, conta.
Do patrão, Sérgio guarda muitas recordações, entre elas a de que aprendeu a fazer charuto e coalhada seguindo o passo a passo de Elias. O aprendizado se deu na ocasião da visita de um cônsul sírio à casa do chefe, o que demandou uma movimentação intensa de preparos. E lá estava Sérgio ajudando inclusive na cozinha. “Eu adoro cozinhar, mas a culinária árabe é muito trabalhosa, prefiro comprar os kits que vendem aqui no centro”, conta.
Duas enchentes e uma pandemia
Apesar da forte concorrência asiática, em especial a chinesa, e do crescente mercado das peças prontas (fast fashion), em especial a partir das décadas de 1980 e 1990, a loja seguiu com as portas abertas e nos mesmos moldes de sempre – muitos móveis, aliás, são os mesmos de cem anos atrás (ou quase isso), o que, segundo Sérgio, atrai curiosos. “É um verdadeiro museu, como se a pessoa voltasse no tempo”, conta o administrador, que já viveu muitas histórias ali. Ser uma loja com a cara do passado, mas com o mix de tecidos que atende ao público atual, é um trunfo.

Para além da concorrência globalizada, a loja sobreviveu a duas enchentes, a de 1941 e a de 2024, e uma pandemia. Ter que fechar a loja durante a temporada do coronavírus sem ter venda e-commerce foi um baque, mas nada que não pudesse ser contornado. Clientes fiéis e venda por WhatsApp ajudaram. Mas nada foi tão impactante quanto a enchente de 2024.
A água barrenta que invadiu com força o centro de Porto Alegre chegou a 1,5 metro dentro da loja. Segundo Sérgio, a perda foi da casa de milhões. “Perdemos praticamente tudo. Muito tecido nobre vindo da Inglaterra e da Itália que virou lixo”, lamenta. Em meio ao caos, com os próprios funcionários tendo que fazer a limpeza, os reparos e, depois, a pintura, porque não havia mão de obra disponível, Sérgio se recorda de uma cena comovente: “A gente estava ali limpando, salvando o que dava, quando uma funcionária, também antiga, olhou para mim e disse: nós vamos conseguir chegar aos 100 anos. Aquilo foi um incentivo para mim.”
Neste 23 de dezembro de 2025, sem muita festa nem alarde, Sérgio e os outros cinco funcionários da Tecidos Raphael DabDab celebram os cem anos de história e de perseverança de uma loja secular.
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Reportagem de Débora Rubin, em colaboração com a ANBA


