São Paulo – As ações em torno da acessibilidade têm crescido a passos largos no Catar nos últimos anos. A percepção é de Josélia Neves, professora na Hamad Bin Khalifa University, do Catar, e uma das principais especialistas na área no país do Golfo. Para ela, a própria Copa do Mundo de Futebol, que será sediada pelo Catar em novembro, foi um dos fatores que impulsionou o investimento para tornar locais e eventos mais acessíveis.
“Por força do Mundial de Futebol, por imposição da Fifa e acima de tudo por o país estar mais aberto à [receber pessoas com algum tipo de] deficiência, surgiu a oportunidade para alavancar os esforços que já se fazia um pouco por todo o lado no país. Diria que o Mundial foi a mola de propulsão para algo que já crescia, mas que precisava de um motor de arranque que desse maior visibilidade ao assunto”, afirmou ela em entrevista à ANBA.
Nascida em Moçambique, a docente está há nove anos no Catar e viu uma melhora na inclusão. “Isto não quer dizer que o Catar seja um país acessível. Diria, sim, que nunca como agora se falou tanto no assunto e se fizeram progressos tão visíveis e significativos. Acreditamos, nós que trabalhamos na área há muito tempo, que estamos vivendo uma virada muito importante no domínio da inclusão e acessibilidade no Catar e, por consequência, no mundo árabe. E quem sabe, com repercussões a nível global, pois a dimensão do megaevento permite esse efeito borboleta”, concluiu.
A última década no Catar
Quando foi selecionada para integrar a equipe que fundaria o primeiro mestrado em Tradução Audiovisual no mundo árabe, Neves sabia que sua experiência seria relevante. “A minha formação de base é em línguas e tradução. Mas a minha especialização é em comunicação acessível e inclusão. Ao ser contratada para dar formação na área da tradução audiovisual foi inevitável que introduzisse no meu currículo questões de acessibilidade. Nesta região nunca se tinha falado (ou feito) legendagem para surdos ou audiodescrição para cegos. Formei aqueles que são agora os especialistas neste domínio no contexto árabe”, revelou ela.
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Outra área na qual a docente tem visto frutos é a da comunicação multissensorial. São as produções que geram experiências inclusivas em exposições, mostras e eventos. “Assim temos trabalhado com museus e espaços culturais, escolas, mídias (televisão e cinema), com parceiros em áreas do turismo e hospitalidade, esportes, shows e lazer. Temos feito auditorias, dado formação e consultoria. Um sem fim de atividades. Formamos um grupo de pesquisa-ação, o Access Hub que coordena todos os esforços da universidade nessa área. É através da Access Hub que trabalhamos em comunidade”, completou.
Copa do Mundo 2022
A especialista contou à ANBA mais detalhes sobre o que acontece agora nos momentos pré-Copa do Mundo do Catar. “O Access Hub está intensamente envolvido no apoio ao esforço nacional para tornar o Mundial ‘o mais acessível de todos os tempos’, nas palavras das mais altas autoridades do país. Estou intensamente envolvida na formação dos voluntários que vão dar apoio a pessoas com deficiência durante o evento. Estive na formação de quem vai fazer as audiodescrições (AD) durante os jogos de futebol e estarei com os meus alunos também fazendo AD ao vivo nas principais cerimônias”, revelou.
Para ela, o trabalho na Copa será, sem dúvida, o mais importante no qual já atuou. “Terá um impacto direto em pessoas de todo o mundo”, enfatizou.
Mas a equipe de Neves também apoia atividades culturais por todo o país árabe criando elementos para a mediação de espaços e eventos. Na própria Hamad Bin Khalifa University (HBKU), que é integrada na cidade universitária (Qatar Foundation), ela conta que todos os professores são muito ativos nas ações dos temas estudados. “Todo o ensino dá-se com um grande enfoque na inovação, investigação e, no caso do meu centro, na área da justiça social. Assim, os nossos dias são repartidos em investigação aplicada, projetos de extensão com a comunidade e aulas”, disse.
Neves defende que o Catar investe muito na educação a todos os níveis. A Qatar Foundation (QF), explica, é o exemplo mais interessante do sistema educativo do país porque agrega todos os graus e áreas de ensino, e tem papel importante na consciencialização para a inclusão.
Já no exterior, Neves segue trabalhando com instituições de Portugal e de outros locais. Ela pertence a dois grupos de pesquisa, o ‘Accessible Portugal’ e o ‘TransMEdia Research Group’. Além desses, Neves colabora com outras universidades e tem uma relação próxima com seus pares brasileiros. “Trabalho muito com colegas no Brasil já desde 2000. Já viajei muitas vezes para dar formação, participar em encontros, fazer parte de projetos, fazer consultoria. Espero continuar nesse encontro de vontades”, destacou.
Por essa conexão, a pesquisadora acredita que há, inclusive, possibilidade de projetos a serem desenvolvidos entre Catar e Brasil no âmbito educacional. Apesar disso, Neves faz a ressalva de que seria preciso ultrapassar a barreira da língua para que uma parceira pudesse ocorrer.