São Paulo – Tiago Lomanto ficou encantado quando, ainda criança, assistiu ao filme Kes, segundo longa-metragem do diretor britânico Ken Loach, de 1969. Baseado no romance de Barry Hines, A Kestrel for a Knave (sem edição brasileira, foi traduzido em Portugal como Um falcão para um patife), conta a história de um adolescente que encontra no treinamento de um falcão um objetivo para sua vida sem perspectivas além do trabalho numa mina de carvão num futuro breve.

Lomanto ainda demoraria cerca de uma década para saber que aquilo que o personagem Billy Casper fazia com sua ave de rapina tinha o nome de falcoaria. Com o tempo, a prática de treinar falcões e gaviões passaria a guiar também a vida do brasileiro.
Hoje, além de trabalhar como falcoeiro para uma empresa de controle de pragas de Curitiba, no Paraná, o soteropolitano de 40 anos fabrica itens de falcoaria como luvas, coletes, capuzes e braceletes, que comercializa em sua loja virtual TL Falcoaria. Tudo isso sem deixar de treinar seu falcão-de-coleira (Falco femuralis), uma das três espécies mais adotadas no Brasil para a prática.
“Por conta da falcoaria, me mudei de Salvador para Fortaleza, onde fiquei dois anos aprendendo a prática com um amigo. Graças à experiência adquirida, fui indicado para a empresa em que trabalho hoje, numa cidade onde criei laços. Como sempre trabalhei como artesão, há seis anos comecei a produzir itens de couro para falcoaria e, no ano passado, abri minha loja virtual”, conta.
Parte das peças, como capuzes e poleiros, são feitas no ateliê que montou na sua casa, em Ponta Grossa, no Paraná. Em Salvador, na Bahia, suas irmãs fazem peças maiores, que demandam o uso de máquinas de costuras, como luvas e coletes. Os artigos são produzidos com couro de canguru, o mais maleável e resistente para esse tipo de objeto, importado por meio de um amigo falcoeiro vivendo no exterior.
Milenar
Declarada em 2010 Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a prática da falcoaria tem uma história estimada em cerca de 4 mil anos. Os registros vão desde a Epopeia de Gilgamesh – escrito cuneiforme da Mesopotâmia –, passando pelos diários de Marco Polo, escritos de Aristóteles e arquivos de inúmeros imperadores.

Uma versão conta que a falcoaria foi criada por beduínos nos desertos árabes como forma de caçar num ambiente hostil para os humanos encontrarem proteína animal. A prática teria se espalhado por meio da Rota da Seda. Ainda hoje, é uma modalidade de caça em países onde é oficialmente reconhecida, onde se capturaram coelhos e outras aves. No Brasil, onde a caça é proibida, não pode ser usada para esse fim.
Turbinada pela prosperidade trazida pelo petróleo nas últimas décadas, a prática tem grande presença nos países árabes. Na Arábia Saudita, por exemplo, ocorre o Festival de Falcoaria Rei Abdulaziz, um dos maiores do mundo, por três vezes reconhecido no Guiness Book pelo maior número de falcões participantes. As competições envolvem corridas e concursos de beleza das aves.
Embora não permita outros animais de estimação viajando na cabine de seus aviões, a empresa aérea Emirates, dos Emirados Árabes Unidos, admite falcões no percurso entre Dubai e alguns destinos no Paquistão, inclusive na primeira classe, conforme informa o site da empresa. As aves possuem até mesmo um passaporte.
Em outro ponto dos Emirados, Abu Dhabi abriga desde 1999 um Hospital de Falcões que, além de cuidados veterinários de diferentes especialidades, presta ainda serviço de hotelaria cinco estrelas. Aberto a visitas, o hospital é uma das atrações turísticas emiradenses.
A Associação Internacional de Falcoaria e Conservação de Aves de Rapina (IAF, na sigla em inglês) conta com 110 associações de 87 países, totalizando 75 mil membros. A Associação Brasileira de Falcoeiros e Preservação de Aves de Rapina (ABFPAR) é um dos membros associados.
Embora não haja números oficiais para o Brasil, estima-se que o lazer associado a essa prática tenha crescido nos últimos anos. No entanto, parece ter aumentado ainda mais o uso da falcoaria para controle de pragas. Quando aliados a outras técnicas, os rapinantes são eficientes formas de espantar aves que podem causar prejuízos, como pombos e urubus.

Uma das empresas especializadas no serviço no país, a Falco Brasil surgiu há 12 anos a partir do hobby de três amigos. Hoje, a companhia atende empresas cujos estoques atraem, principalmente, pombos e pardais. Rapinantes como o gavião-asa-de-telha (Parabuteo unicinctus) fazem uma parte do trabalho, complementado por outras práticas como captura com armadilhas. Há 10 anos a empresa atua ainda no Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas, onde os urubus são a principal ameaça para os aviões.
“Elas não matam os pombos, que embora sejam espécies exóticas invasoras, podem transmitir doenças para os rapinantes. Para as aves nativas, como urubus, existe toda uma regulamentação para atuarmos. A maior contribuição dos gaviões e falcões no controle é criar um ambiente de medo, uma vez que são predadores naturais dessas aves”, explica Delo Verginio, sócio-proprietário da Falco Brasil, que recentemente voltou a praticar falcoaria como hobby depois de adquirir um falcão-de-coleira.
As aves podem ser compradas por valores em torno de R$ 5 mil, em criadouros autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Com 60 dias de vida, são postas à venda e podem começar a ser treinadas. Para que se mantenham saudáveis, precisam voar todos os dias.
As aves voam de um poleiro até o braço do treinador, protegido por uma grossa luva de couro. Ao cumprir cada repetição da tarefa, em que progressivamente se aumenta a distância a ser percorrida, o rapinante ganha uma recompensa: um pequeno pedaço de carne. O treinamento pode envolver ainda o uso de uma lure, um peso que simula uma presa voadora, que é girado pelo treinador para que a ave de rapina ataque em pleno voo.
Essencialmente carnívoras, as aves de rapina são alimentadas com camundongos, codornas e mesmo alguns insetos vendidos em lojas especializadas, como tenébrios e grilos. No Brasil, além do falcão-de-coleira e do gavião-asa-de-telha, treina-se ainda o lendário falcão peregrino (Falco peregrinus), ave mais rápida do mundo, e corujas como a suindara ou coruja-da-igreja (Tyto furcata).
Controle de pragas
O Instituto Rio Grandense do Arroz (IRGA) tinha um sério problema cinco anos atrás. Órgão do governo do estado do Rio Grande do Sul, o IRGA realiza uma série de experimentos de campo não apenas da cultura do arroz, mas também da soja, do milho e de pastagens. Uma concentração tão grande de grãos comestíveis, em diversas fases de desenvolvimento, é um verdadeiro banquete tanto para aves nativas como o chupim, o anu-preto e a caturrita, quanto para invasoras como o pombo doméstico.

“Usávamos rojões, drones, mas depois de um tempo as aves se acostumavam e voltavam a atacar as plantações”, conta Julio Uriarte, gerente de pesquisa da Estação Experimental de Cachoeirinha do IRGA, área de 200 hectares localizada na região metropolitana de Porto Alegre.
Em 2020, a autarquia realizou uma licitação e contratou uma empresa que usa, entre outros métodos, os falcões e gaviões. A prática deu tão certo que os profissionais do instituto estudam ampliá-la para outras estações experimentais espalhadas pelo estado.
“Como as aves de rapina são predadores naturais desses pássaros, elas sabem instintivamente que não podem estar por perto quando veem uma e se dispersam rapidamente”, afirma.

Segundo o engenheiro agrônomo, muitos produtores do estado passam pelo mesmo problema, mas a contratação do serviço é inviável devido ao alto custo. Hoje, o instituto tem um contrato com a empresa responsável de cerca de R$ 600 mil por ano, o que inclui ainda controle por outros métodos, como armadilhas para captura de pombos e cães para espantar aves e pequenos mamíferos.
Como se tratam de experimentos que demandam altos investimentos, e cujos resultados positivos são transferidos aos produtores do estado, é compreendido como uma boa forma de aplicar os recursos.
Para quem é falcoeiro, porém, treinar um falcão ou gavião vai muito além de uma atividade utilitária. “É uma oportunidade de estar em contato com a natureza”, diz Lomanto. A rotina diária de voos, de domingo a domingo, não é um problema, pelo contrário. “Um dia sem voar é um dia perdido”, afirma Lomanto, numa frase que pode servir tanto para a ave quanto para o treinador.
Reportagem de André Julião, em colaboração com a ANBA
*Colaborou Débora Rubin


