Dayanne Mikevis
O escritor norte-americano radicado no Brasil, Daniel Horch, lançou um romance inspirado em As Mil e Uma Noites, célebre coletânea de contos árabes. O livro de Daniel, publicado pela editora Imago, se chama "As Cem Asas do Anjo" e é baseado no conto "História de Abul-Hassan Ali Ebn Becar e de Chemselnihar, favorita do califa Harun al-Hachid". É a 185ª noite da obra árabe.
O livro relata um romance impossível entre a odalisca favorita do sultão e o príncipe da Pérsia. A história se passa durante o século IX, na Cidade da Paz, como era chamada Bagdá, então capital do império árabe. Na época, o império árabe chegava a regiões como a Pérsia, atual Irã. Era o período de governo do califa Harun al-Rachid e idade do ouro, ápice cultural e econômico do mundo árabe.
O autor morou dois anos na França e durante esse período leu As Mil e Uma Noites, mas foi em uma viagem ao Marrocos, em 1996, que se apaixonou pela cultura árabe. Quando voltou aos Estados Unidos resolveu que iria desenvolver o conto, focando em um personagem sem muita importância na obra original, o manipulador de drogas Abul-Hassan Ebn Taher, que tem a confiança do califa e ajuda os dois jovens amantes. Como estava na França quando tomou o primeiro contato com o mundo árabe, Daniel leu As Mil e Uma Noites traduzida por Antoine Galland. A versão não é uma das mais fiéis trazidas para o Ocidente já que foram agregados alguns contos à narrativa. A do inglês Richard Francis Burton é considerada mais próxima do original.
O livro de Daniel, que escreve para a revista Art and Auction e a agência de notícias econômicas Market News International, já foi traduzido para o alemão, o búlgaro e o polonês. Daniel é graduado em literatura alemã por Harvard. No momento, o norte-americano trabalha em um segundo livro, no qual fala sobre sua experiência de São Paulo. Daniel, 34 anos, terminou a obra no Brasil, quando morava em um edifício chamado "Alamac", que significa "Que Deus esteja convosco", em bom árabe.
ANBA – Como surgiu a idéia de seu livro?
Daniel Horch – Eu estava morando na França em 1996 e meu melhor amigo era marroquino. Fui viajar com ele para o Marrocos durante as férias de verão, onde passei três meses. Eu comecei a ler As Mil e Uma Noites em francês quando estava buscando idéias para um romance. Eu gosto de pegar histórias velhas e adaptar. Aproveitei essa combinação de ler o livro e viajar ao Marrocos. Os familiares do meu amigo viviam como na Idade Média, sem eletricidade, sem decoração nas casas, em um povoado do interior, distante uma hora e meia da cidade de Agadir.
Você diz que a vida das pessoas que conheceu no Marrocos o remetia à Idade Média. Que elementos fizeram você ter essa análise?
A mãe do meu amigo morava na França, então ficamos na casa da avó dele. Ele tinha duas tias morando no Marrocos, uma era muito moderna, trabalhava em uma prefeitura, vestia-se de um jeito ocidental, mas a outra morava numa aldeia nas montanhas (com a avó do amigo, na casa onde os dois ficaram). Não havia estrada, nem eletricidade. Para chegar até lá se ia de carro até uma certa distância e depois se subia a pé. Era uma aldeia só de mulheres pois os homens haviam deixado a cidade para trabalhar. E elas eram pastoras de cabras. Na casa onde ficamos não havia nenhuma decoração na parede, exceto uma caligrafia e um retrato do rei de Marrocos. Não tinha televisão.
Apesar da vida simples com a qual você teve contato no Marrocos, no livro você descreve um ambiente muito rico. Esses personagens da vida real produziram em você um certo encantamento?
O mundo que eu descrevo no livro é muito diferente que o que eu vivi no Marrocos, que é o da idade do ouro da cultura árabe. Uma das idades do ouro. Eu fiquei, sim, muito fascinado mesmo porque eu sabia vagamente, antes da minha pesquisa, que Bagdá tinha sido uma cidade importante, mas eu não sabia até que ponto era muito mais avançada do que as capitais européias. Era uma cidade de um milhão de pessoas, enquanto Londres e Paris, que eram as maiores cidades da Europa na época, tinham 40 mil habitantes. Também havia a riqueza, principalmente a cultural, pois os árabes salvaram muitos dos textos de Aristóteles e outros sábios e desenvolveram na matemática a álgebra. Eu fiquei impressionado, parecia um pouco um mundo de fantasia.
Pelas descrições que há no livro, você parece não ter se baseado apenas em As Mil e Uma Noites. Imagino que deva ter acontecido uma pesquisa extra. Houve? Durante quanto tempo e quais foram as fontes consultadas?
Acho que foram uns três ou quatro meses pesquisando, quase sempre na biblioteca municipal de Nova York. A revisão do livro eu fiz aqui (Brasil). Aí, eu utilizei a biblioteca da USP (Universidade de São Paulo), que tinha alguns livros muito úteis. Eu não leio árabe, mas tive que ler o Alcorão, o que todo tradutor falou era que era impossível. Eu li a versão de George Sale, que é considerado por muçulmanos bastante objetivo, embora não capte a beleza da língua. Depois li uma outra tradução, de um teólogo muçulmano da Índia, e muitos comentários sobre as tradições orais que cercam o alcorão.
Você chegou a pensar em outros temas para uma história no Oriente?
Quando eu li "As Mil e Uma Noites" foi a história que mais me marcou (a da odalisca e o príncipe) e nem é uma das mais famosas. Eu achei muito interessante um personagem que tinha no conto de fadas original uma inconsistência total (o manipulador de drogas Abul-Hassan Ebn Taher). Num momento ele era um velho sábio e cauteloso e de um momento para o outro ele se torna completamente louco e sacrifica tudo. Para mim essa contradição me parecia interessante.
Como você, jovem, se inspirou e conseguiu dar vida a um personagem bem mais velho, de outra época e cultura?
Acho que se tenho algum talento como escritor é a capacidade de imaginar e sentir situações e emoções que não tenha vivido pessoalmente. Para mim, isso é uma das metas, um dos sonhos em literatura, é o de colocar outras pessoas na alma de outra pessoa em um mundo completamente diferente.
Existe algum personagem real no qual você tenha se espelhado para fazer o livro?
Não. Eu pensei em mim mesmo, em como eu seria se tivesse vivido em um mundo assim, envelhecido em um mundo assim. Acho que o melhor, quando escrevo, é quando o personagem me surpreende. Quando não sabia que o personagem ia fazer isso, mas ele faz, é quando, quase sempre, acontecem as melhores cenas.
E quanto tempo durou o processo de feitura do livro?
Uns três anos. Eu escrevo muito rápido, depois jogo tudo fora e escrevo de novo.
E houve algum tipo de revisão quanto às descrições de época e citações do Alcorão?
Sim. O pai de um amigo em Nova York tem doutorado em árabe. Ele ensina poesia e línguas míticas – árabe, hebraico e aramaico – da Idade Média. Ele confirmou que tudo estava correto historicamente. Eu vi na internet que o livro foi usado na Universidade da Califórnia dentro de uma aula para saber mais do ambiente da época.
Qual foi seu critério para ter como base a versão de Antoine Galland e não a de Richard Burton, que é considerada mais fiel às histórias originais e foi escrita originalmente em inglês?
Utilizei a do Galland porque estava na França na época e foi a versão que eu encontrei. Mas essa versão fez muito sucesso no mundo árabe. Acho isso muito interessante. A primeira edição do livro foi publicada em francês, mas depois foi traduzida para o árabe. Inclusive os contos que ele tinha inventado como Aladim e Ali Babá, que depois entraram para o repertório dos contadores de histórias. É interessante como ele conseguiu inventar contos que viraram parte do mundo árabe. Para mim essa é a maior prova do sucesso dele. Burton tenta ser extremamente fiel, tenta imitar a estrutura do árabe na linguagem. Então ele inventa verbos novos, a ordem das palavras na frase é muito estranha em inglês. Eu acho isso chato, mas tem gente que gosta. Minha teoria a respeito de tradução é que ela deve tornar o texto natural dentro da linguagem onde está sendo publicado. Para mim essa sensação de fluidez e de naturalidade é mais importante para o leitor.
O seu interesse pela literatura árabe foi além de As Mil e Uma Noites?
Eu li alguns dos escritores contemporâneos mais conhecidos. Não sou um expert em literatura árabe, mas gosto muito de Naguib Mahfuz. Inclusive "Arabian Nights and Days" tem muito de As Mil e Uma Noites. Mahfuz é o escritor árabe que eu mais gosto.
E ele também é uma influência?
Na realidade eu o li depois de escrever esse livro. Acho que foi uma sorte minha porque o Mahfuz é tão bom que eu tentaria imitá-lo e é muito difícil imitar um grande escritor.
Você acha que já está "livre" de As Mil e Uma Noites ou ela deve permanecer refletida em outros trabalhos seus?
Acho que sim (vai permanecer) porque a estrutura das Mil e Uma Noites é muito complexa, muito complicada. Tem muitas histórias dentro de histórias. Ida e volta no tempo. Eu aprendi muito dessa estrutura, principalmente de ponto de vista narrativo. Eu estou fazendo muito isso no livro que estou escrevendo agora. Acontece muito que alguém conta uma história e volta e cria histórias diferentes. Isso é parte do que aprendi com As Mil e Uma Noites, que uma história não precisa necessariamente ter começo, meio e fim lineares. Podem existir vários fins e vários começos.

