São Paulo – No momento em que muitas empresas precisam se reinventar para lidar com a crise gerada pela pandemia de covid-19, a renegociação de contratos jurídicos é uma das preocupações. A necessidade de prever em contratos a possibilidade de eventos deste porte foi uma das principais recomendações dos especialistas brasileiros e árabes que se reuniram em webinar promovido pela Câmara de Comércio Árabe Brasileira nesta quarta-feira (20). Com o tema “Negociações internacionais e segurança jurídica: adequações diante deste novo cenário”, eles falaram a respeito de impactos sobre os contratos locais e internacionais, sugestões para mitigação de riscos e tendências para o comércio internacional.
Os palestrantes destacaram que há diferentes pontos entre os contratos firmados antes da disseminação da pandemia, dias após o início da pandemia e os que foram firmados após esta disseminação.
O sócio da Veirano Advogados, Fábio Amaral Figueira, considera que eventos como a pandemia podem passar a não mais ser inclusos nos chamados ‘casos fortuitos’ de ‘força maior’. O caso fortuito ou de força maior se aplica quando há efeitos de um evento que não era possível evitar ou impedir, caso da pandemia de covid-19. “Pensando no futuro, [se pode] estabelecer com mais clareza que determinados eventos não serão considerados como força maior ou o devedor pode assumir uma responsabilidade pelo caso fortuito ou força maior. A pandemia vai obrigar o mundo dos negócios a revisitar certos conceitos”, ponderou.
Para ele, uma cláusula de resolução, aquela que diz respeito ao término do contrato, poderia abarcar eventuais efeitos de pandemias. “Há situações em que pode haver um impedimento absoluto de continuidade daquela relação”, afirmou Figueira.
O diretor jurídico da Câmara Árabe, William Adib Dib Jr., pontuou a relevância das empresas passarem a ter cláusulas que permitam a revisão desses contratos caso venham circunstâncias que alterem o cenário, como é o caso da pandemia. Já as empresas com contratos fechados após o início da pandemia passam a ter outro cenário. “Fechamento de contrato agora já é em meio à pandemia. É importante que tenham cláusulas porque agora não é possível mais ter a teoria de eventos imprevistos. Você precisa encontrar a melhor técnica para poder eventualmente resolver as opções contratadas sem problemas mais graves”, apontou Dib.
No momento, Figueira explica que apenas nos próximos meses deve vir uma tendência judicial para decisões contratuais. Já nos negócios internacionais, ele reforça a necessidade de analisar se a lei de regência é a brasileira ou do país árabe. “Também é importante ter em mente o que a parte realmente deseja naquele momento, se é suspender ou encerrar completamente o serviço, e lembrar das questões de negócios e não apenas da decisão jurídica, se a parte quer manter uma boa relação contratual de negócios com o parceiro no país árabe e vice-versa”, afirmou.
Um segundo ponto levantado pelo advogado são os custos envolvidos para levar os casos a disputas judiciais. Figueira aponta que alternativas menos onerosas, como a mediação, podem ser soluções. “No primeiro momento, é interessante que as partes negociem entre elas. Se a negociação não estiver sendo frutífera, talvez seja o caso de se pensar em mediação. O mediador é um facilitador”. Outra opção, segundo ele, é a alocação de risco contratual, quando há uma discussão em que as partes negociam para especificar os riscos que cada contratante deverá suportar.
Legislação de países árabes
Os sócios do escritório Baker & McKenzie Habib Al Mulla, Tarek Saad e Pietro de Libero (foto no topo), também participaram do webinar e abordaram como as questões de força maior e eventos imprevisíveis são tratadas pelos árabes. Segundo os sócios do escritório sediado nos Emirados, o código seguido pela maioria dos países árabes se baseia no código egípcio, que é derivado do francês, e por isso, as mesmas regras são aplicadas na maioria destas nações.
“No caso de força maior, o contrato fica completamente rescindido se a obrigação de uma das partes for completamente impossibilitada ou de forma parcial se apenas uma parte for impossibilitada. No segundo caso, esse contrato continua em vigor pela parte da obrigação que ainda possa ser cumprida, e a contraprestação é reduzida de forma equivalente. No entanto, a outra parte terá direito de rescindir o contrato inteiro”, explicou Libero, que é especialista em direito contratual.
Segundo ele, mesmo se não houver presença de disposição de força maior nos contratos, a regra ainda pode ser evocada por causa do código civil. “É possível evocar apenas se o evento causar uma impossibilidade que não existia no momento do contrato e teve impacto antes de cumprir a obrigação ou quando o evento tornar o cumprimento da obrigação impossível”, apontou.
No cenário da covid-19, o especialista cita a interrupção de transporte, a quarentena obrigatória ou o fechamento obrigatório das plantas de produção como exemplos da impossibilidade de uma das partes cumprir suas obrigações de entregar ou produzir algo. “Nesses casos, o contrato é rescindido e qualquer pagamento já realizado deve ser devolvido”, lembrou.
Há, ainda, recursos para o caso de o cumprimento da obrigação ser possível, mas ter ficado extremamente oneroso. Libero explica que a ideia é que o juiz chegue a uma solução em que as obrigações de ambas as partes voltem a ter equilíbrio. “Por exemplo, entregar um maquinário pesado que não pode mais ser entregue por via marítima. A única possibilidade seria por serviço dedicado de transporte aéreo. Embora isso seja possível, o custo de transporte ficaria 10 vezes mais alto. Por causa disso, o vendedor perderia a margem da venda e teria prejuízo econômico. Nesse caso, o juiz poderia alterar os termos do contrato. Vemos na nossa experiência que essas duas disposições ficaram agora muito relevantes”, apontou o especialista.
Tarek Saad explicou que as decisões jurídicas são diferentes para contratos assinados em períodos distintos. “Nos contratos assinados antes da disseminação do vírus e de ele virar uma pandemia, há casos em que talvez seja impossível que uma das partes cumpra as obrigações porque talvez isso tenha resultado no fechamento de fábricas ou impossibilidade do transporte. Nesse caso, a parte pode ajuizar o processo pedindo isenção do cumprimento das obrigações e devolução do dinheiro do contrato. Isso é a dissolução do contrato”, considerou.
Por outro lado, em casos em que a parte for capaz de fornecer uma quantidade inferior daquele produto contratado, ela pode ajuizar um processo para solicitar a diminuição do compromisso. “Chamamos isso de teoria de eventos imprevistos. Ao contrário da força maior, isso não leva ao cancelamento do contrato porque a vara reduziria a obrigação. Nesse caso, os prejuízos são compartilhados entre as duas partes”, explicou Saad.
Já em contratos assinados nos primeiros dias da disseminação do coronavirus, Saad acredita que é possível aplicar a teoria de eventos imprevistos, mas sem implementar a força maior. Por fim, em contratos firmados após a disseminação do coronavírus, nem as normas jurídicas relacionadas à força maior nem aos eventos imprevistos são aplicáveis, é o caso de contratos de fornecimentos de máscaras faciais, detalha o especialista.
Já no que diz respeito às leis trabalhistas, Pietro explica que além dessas regulações, muitos países adotaram decretos específicos. “Pensando em como os empregadores podem reagir e em que medida podem reduzir o custo trabalhista, muitas disposições foram adotadas nos países árabes. Nos Emirados, houve uma adoção de medidas sobre dispensas e procedimentos desse tipo. As disposições gerais de força maior costumam ser sobrepostas sobre as decisões trabalhistas”, disse.
O especialista lembrou que a recomendação é começar com medidas mais leves, como o trabalho remoto, licenças não remuneradas e redução temporária dos salários, para só se nada disso for suficiente, chegar a demissões.
Os sócios relataram que o escritório tem o que chamam de ‘centro do coronavirus’, alimentado com atualizações relacionadas ao tema e compartilhadas com seus parceiros. A Baker & McKenzie Habib Al Mulla também possui escritório no Brasil e, segundo Libero, vem oferecendo aconselhamento sobre contratos internacionais no âmbito do coronavírus.
O presidente da Câmara Árabe, Rubens Hannun, que conduziu o webinar, falou sobre a importância dessa área para que as relações entre países e empresas não sejam prejudicadas ou sofram atrito. “Cada país está com uma realidade diferente, então essa relação jurídica também sofre com a pandemia”, disse. O webinar contou, ainda, com a presença do líder de mercados da KPMG Brasil, André Coutinho, da diretora de vendas e marketing do Marriott Hotels – Brasil, Nina Mazziotti, além do secretário-geral da Câmara Árabe, Tamer Mansour, e o CEO da Travel Plus Turismo, Renato Aureliano.
Leia mais sobre o conteúdo do webinar nas reportagens abaixo:
Empresas devem fazer plano da retomada
Marriott Brasil faz adaptações para nova fase.
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