São Paulo – Raimunda só tinha quatro anos quando viu o porto de Beirute ficar para trás. Não são muitas as memórias. Pequena que era, suas lembranças são uma colcha de retalhos de lembranças dos outros e de antigas fotografias. Ao chegar no porto de Santos, conheceu seu pai, que tinha saído anos antes do Líbano para tentar a sorte no Brasil. “Saímos do inverno libanês e chegamos em fevereiro, com um calor forte e uma chuva que não cessava”, recorda a professora aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), Raimunda Abou Gebran.

Ao lado do irmão Michel Assali, dois anos mais velho, seu companheiro da longa viagem de 1956 (vieram com a mãe e a avó paterna), ela escreveu o livro “Entre Verões e Invernos: Estações de uma Família Libanesa” (Scortecci Editora), lançado em uma grande festa familiar em novembro, em São Paulo.
Na obra, os irmãos compartilham as lembranças conjuntas daquela viagem. A saída da aldeia de Ain-Hurche, no Vale do Bekaa, a cruzada do Atlântico, o encontro com o pai no porto e a ida de Santos até Assis, no interior de São Paulo, onde o progenitor havia se instalado por conta de uma grande comunidade do seu povoado libanês que já vivia ali.

“Todos os imigrantes relatam sobre a exuberância das montanhas do litoral na chegada a Santos, mas nós não vimos nada, de tanto que chovia”, recorda Michel, que também se tornou professor e trabalhou com educação a vida toda, até se aposentar durante a pandemia.
A avó paterna, Marian, nascida em 1901, veio com eles e morreu no Brasil sem falar português. Quando estava com 67 anos, foi ao Canadá conhecer alguns irmãos, sozinha, sem falar nenhuma palavra em inglês. Era ela, segundo Raimunda, a grande contadora de histórias da família e de quem os dois herdaram as memórias familiares. Boa parte do livro se concentra na história do pai, Youssef, e da mãe dele, Marian, cujo marido tinha ido embora para a Argentina anos antes e a deixado sozinha com o filho. A família nunca mais voltou a se reunir.
A chamada diáspora libanesa é cheia de histórias como as dos Abou Assali (Gebran é o sobrenome do marido de Raimunda, também de origem libanesa), de pessoas que saiam de um Líbano rural, cujo trabalho pesado na terra não enchia boca de família, e partiam rumo ao sonho de fazer a América. A própria família dos irmãos professores-escritores se espalhou pelo Canadá, Brasil, Argentina – alguns ficaram no Líbano – a ponto de muitos nunca mais se verem.
Terra nova
Quando Youssef chegou em Assis, cidade hoje com mais de cem mil habitantes a 434 km da capital, rezou a cartilha dos árabes que vinham para o Brasil: mascateou por três anos até abrir sua própria loja. Quando a família chegou, sua situação financeira já era melhor. Uma semana pós a chegada a Assis, os irmãos foram para a escola… falando árabe. “Pense num bullying!”, diz Raimunda, rindo. “Isso a gente não esquece!”, complementa o irmão mais velho.

O aprendizado, ainda bem, foi rápido e Raimunda não perdeu o árabe, língua que fala fluentemente até hoje. Michel entende, mas já não fala com a fluência da infância. Ela já foi visitar o Líbano quatro vezes, o que incluiu ir até o vilarejo onde nasceu e rever alguns parentes. Michel foi duas vezes, em uma delas com toda a sua família.
Já estabelecidos em Assis, nasceu Roberto, o filho brasileiro de Youssef e Faride, o irmão mais novo de Raimunda e Michel que não teve a vivência migratória deles. “Talvez, por isso, o livro para ele também foi surpreendente, ele ficou emocionado”, diz Raimunda. A neta mais velha da professora, de 18 anos, também ficou surpresa com os percalços enfrentados pelos antepassados.
“O objetivo maior do livro é justamente que as novas gerações saibam tudo o que precisou ser feito, o tanto que nossos pais e avós lutaram e tiveram que deixar para trás, para que eles pudessem ter essa vida confortável de hoje”, diz Michel, que lamenta o fato de os pais não terem visto a linda família que chegou depois. “Que pena que eles não puderam ver que nós prosperamos e, os netos, ainda mais.”

O livro traz uma série de documentos que Raimunda guardou em Assis (ela viveu sempre lá, já o irmão se mudou para São Paulo, onde mora até hoje), outros que foram encontrados no Museu da Imigração, em São Paulo, como um em que aparece a relação dos nomes deles. E, também, é recheado de fotos da família, incluindo uma em que os dois irmãos posam ao lado do pai, ainda no porto, uma das favoritas de Michel.
A história termina em 1968, quando a família se muda para a cidade vizinha, Presidente Prudente, e se inicia uma nova fase da família, com os irmãos mais velhos indo fazer faculdade e começando a percorrer seus próprios caminhos. “Aí já seria todo um outro livro”, diz Raimunda. Afinal, a história segue sendo vivida e contada pelas novas gerações.
O lançamento do livro repercutiu tanto em Assis que acabou transbordando para outros lugares do Brasil. A professora conta que ficou sabendo que saiu até em um jornal para a comunidade brasileira do Líbano. E o que era para ser um livro familiar, com baixa tiragem, acabou gerando interesse para além do núcleo Abou Assali – e para além da comunidade libanesa.
Saiba mais sobre o livro.
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Reportagem de Débora Rubin, em colaboração com a ANBA


