São Paulo – A 14ª edição da Bienal de Sharjah (SB14), nos Emirados Árabes Unidos, conta com trabalhos inéditos de duas artistas brasileiras, Aline Baiana e Laura Lima. A exposição começou em 07 de março e vai até 10 de junho, e exibe obras de mais de 80 artistas, com o tema “Deixando a Câmara de Eco” (tradução livre para ‘Leaving the Echo Chamber’).
A bienal tem três exposições, com curadoria de Zoe Butt (Vietnã), Omar Kholeif (Egito) e Claire Tancons (Guadalupe, no Caribe). Dentro da exposição de Tancons, “Look for Me All Around You” (‘Procure por Mim ao seu Redor’, em tradução livre), há obras de 30 artistas de nacionalidades diversas, incluindo as brasileiras Aline Baiana e Laura Lima.
Cobra de Arco-íris
A instalação multimídia de Aline Baiana, trabalho inédito feito para a bienal, traça um paralelo entre a construção de barragens no Brasil e no Líbano, em que ambas poderiam pôr em risco rios e áreas de biodiversidade sustentadas por essas águas. São duas obras entrelaçadas; uma se chama “Janna Dam or The second murder of Adonis” (em tradução livre, ‘Barragem Janna ou o segundo assassinato de Adonis’), e a outra, “Aliança por um Mundo Ensolarado ou A Cobra Grande em Rios Livres”.
As duas instalações são conectadas por um canal de água. A Cobra Grande apresenta uma canoa original do Rio Tapajós, na região Norte do Brasil, e dentro dela tem um espelho cortado em formato de rio/cobra dentro da canoa com água transbordante. “Quando o sol bate, entre 13h e 16h, o espelho projeta uma cobra arco-íris na parede, uma associação com a serpente arco-íris Oxumaré, do candomblé, e com o animal mitológico das comunidades ribeirinhas do Tapajós, Mangabal e Pimental; para eles, a cobra grande vive e protege o rio”, contou Aline Baiana, em entrevista à ANBA por telefone de Berlim, onde vive. Por baixo da canoa do Tapajós há uma réplica da canoa feita em cimento, com caixas de som emitindo sons da floresta e depoimentos de lideranças das comunidades ribeirinhas Mangabal, Pimental e Munduruku.
Ligando as duas obras há uma canal de água construído aos moldes do canal Falaj, um sistema de irrigação de origem árabe que utiliza apenas a força da gravidade para distribuir água de fontes subterrâneas ou nascentes em regiões desérticas para agricultura e uso doméstico. A água que transborda da canoa cai nesse canal em formato de rio/serpente e faz um circuito fechado em direção à obra Barragem Janna, uma jarra tradicional de água de Beirute, no Líbano, que visa reproduzir um microssistema hidrológico; em cima da jarra, uma pedra goteja água na garrafa.
Segundo Baiana, uma empresa brasileira foi contratada para construir a Barragem Janna, no Vale de Adonis, no Líbano, e grandes áreas já foram desmatadas na região. Na região, há uma pedra com uma frase em árabe de um imperador romano dizendo ser proibido desmatar as árvores do local. “É um dos registros mais antigos de preocupação com a preservação do meio ambiente”, disse a artista, que em sua obra, colheu frases de moradores da região sobre a situação da barragem e escreveu, em árabe, em pedras na instalação.
“Fizeram estudos [no Vale de Adonis] e além de ser uma área sísmica, um perigo para a construção e manutenção de uma barragem, o solo da região é de pedras calcárias, muito porosas, logo a barragem nunca vai funcionar em sua capacidade total porque uma boa parte vai ser absorvida pelo solo”, explicou. “Além disso, o aquífero do Vale de Adonis abastece Beirute, o que pode colocar em risco o abastecimento de água da capital”, declarou.
Com isso, Baiana decidiu fazer um trabalho que unisse o problema comum nos dois continentes. A artista produziu a obra inédita comissionada pela Fundação de Arte de Sharjah, e teve um trabalho de pré-produção quando foi ao Rio Tapajós para buscar a canoa que faz parte da instalação e colher os depoimentos da comunidade. Não foi ao Líbano, mas teve uma produtora libanesa que a ajudou a obter frases de pessoas que vivem no Vale de Adonis.
Segundo Baiana, a recepção da obra pelo público da bienal foi positiva. “As pessoas acharam muito interessante, principalmente a profundidade da pesquisa e o fato de [a obra] ligar geograficamente dois continentes por problemas ambientais graves com as barragens”, contou. “Posso ser romântica, mas acredito que a arte traga um encantamento e provoque alguma mudança na forma de ver as coisas”, declarou.
Com foco no conflito ontológico (área da filosofia que estuda o ser e a existência) em convergência com estudos de justiça indígena, feminista, étnica, ambiental e social, o trabalho de Aline Baiana revela a importância de descobrir outras histórias. Baiana é nascida em Salvador e atualmente vive e trabalha entre o Rio de Janeiro e Berlim, na Alemanha.
Gigantesco Parentesco
Já a mineira Laura Lima traz uma instalação inédita (foto acima), também comissionada pela Fundação de Arte de Sharjah, chamada “Massive Kinship (solitary promenade)” – em português, ‘Gigantesco Parentesco (passeio solitário)’. O nome em português remete à letra da música “Lilith” da cantora e compositora carioca Ava Rocha, no verso que diz “Ela é minha irmã de cor, irmã de corpo/ Irmã de santo, mana de sorte/ Gigantesco parentesco/ Quero ser que nem ela/ Ela é minha irmã de cor”.
A instalação de Lima consiste em um painel de tecido de veludo preto, com cinco metros de altura, cabos e sistema de rastreamento, que se arrasta por um circuito fechado em meio à área de exposições, que tem um pé direito de três metros. “O painel visita a exposição e funciona bem com o tema da exposição da [curadora] Claire [Tancons] que é ‘Look for Me All Around You’”, disse a artista, em entrevista à ANBA por telefone, do Rio de Janeiro. Lima se inspirou nas mulheres muçulmanas e suas vestes, particularmente o véu de cor preta, para conceber o projeto, traçando uma relação de semelhança entre a cultura árabe-muçulmana e a cultura brasileira no que diz respeito às liberdades e opressões vividas pelas mulheres. “Esse é o gigantesco parentesco porque tendemos a olhar para a mulher coberta pelo véu e achar que isso é errado, mas nós, ocidentais, brasileiras, temos um véu subjetivo que é o machismo, o culto ao corpo e à magreza, a desigualdade entre os sexos, esse é o nosso véu, estamos em condições parecidas”, explicou a artista.
Lima viajou a Sharjah um ano atrás, quando foi selecionada para participar da bienal, e este ano ficou no emirado por quinze dias, entre o final de fevereiro e a abertura da exposição, no início de março. “A questão política é sempre muito importante no trabalho de um artista, mesmo que seja de forma sutil, e a recepção do trabalho foi boa, elegante, percebi que as pessoas de Sharjah tem uma diplomacia interessante”, contou. Para ela, os Emirados Árabes têm, cada um, sua função social. “Dubai é mais aberta, global; Abu Dhabi é mais voltada ao dinheiro, como Wall Street, e Sharjah se conecta mais com as artes, você sente isso”, opinou.
O conjunto de trabalhos de Lima desafia as categorias padrão, como performances, esculturas e pinturas. Ela chama seus desenhos de “notas”, pinturas de “arquitetura” e colagens de “notas de rodapé”. Na produção da artista, o trabalho é sempre “outra coisa”, com um indício de enigma para o espectador perceber ou resolver. Lima nasceu em Minas Gerais e atualmente vive e trabalha no Rio de Janeiro.
A Câmara de Eco
Na cultura popular, a “câmara de eco” é um apelido para o circuito da mídia noticiosa, reforçado por uma rede fechada, controlada e governada por fontes privadas, governos e corporações. É também uma metáfora do domínio histórico do capital e dos sistemas culturais, sociais e políticos que ditam o seu acesso, produção e distribuição – este capital atrai (e acaba privilegiando) imagens, linguagens, habilidades, histórias e geografias particulares. Em outro contexto, “câmara de eco” pode ser também um espaço em que o som bate e reverbera, onde a memória e a imaginação ecoam pela superfície, pelo espaço e pelo tempo.
“Deixando a Câmara de Eco” não propõe como sair deste contexto, mas procura discutir uma série de provocações sobre como se pode renegociar o corpo, a forma e a função desta câmara, a fim de avançar para a multiplicação dos ecos espaço adentro, tais vibrações representando as vastas formas de produção humana – seus rituais, crenças e costumes.
A 14ª Bienal de Sharjah traz uma variedade de obras inéditas, incluindo instalações em grande escala, performances e filmes. A mostra é organizada pela Fundação de Arte de Sharjah (Sharjah Art Foundation). Mais informações no site do evento.
Serviço
14ª Bienal de Sharjah
De sábado a quinta-feira, das 9h às 21h
Sexta-feira, das 16h às 23h
Fundação de Arte de Sharjah
Corniche St, Sharjah, Emirados Árabes Unidos
Outros locais de exposição da Bienal
Arts Square:
– Bait Al Serkal
– Bait Obaid Al Shamsi
– Arts Square Courtyard
– Collections Building
– Emirates Fine Art Society
– Sharjah Art Museum