Por Silvia Antibas*
Em 2016, fui convidada a participar de um encontro internacional, intitulado Les Arts et la Culture en Amérique Latine et au Moyen-Orient – 4º Colóquio Internacional da Universidade de Saint-Esprit de Kaslik (USEK), em Kaslik, no Líbano. Trata-se de um encontro regular de pesquisadores e intelectuais latino-americanos, em sua maioria descendentes de imigrantes do Oriente Médio, cujo objetivo é conectar a diáspora da América Latina com suas origens na terra distante de pais e avós. Lá, o professor brasileiro Roberto Khatlab, diretor do Centro Latino-Americano de Estudos e Culturas (CECAL) – e coordenador do encontro – apresentou-me o projeto de Digitalização da Memória da Imigração Libanesa para a América Latina. A ideia era integrar o Brasil em um grande banco de dados, hospedado na Biblioteca Digital da USEK, já inserida em uma rede internacional de bibliotecas e banco de dados, possibilitando uma vasta troca de informações. Desse projeto já faziam parte outros países, entre eles Argentina e México.
A Biblioteca tem coleções especiais, fotos, livros raros e manuscritos, com mais de 1,6 mil títulos, em vários idiomas, constituindo fonte inesgotável para pesquisadores e curiosos. Confesso que, como historiadora e pesquisadora, sempre senti falta de informações e documentos primários sobre a imigração árabe. A maioria das pesquisas e conteúdos sobre o tema originava-se das mesmas fontes secundárias: livros importantíssimos de intelectuais já consagrados e algumas poucas fontes primárias espalhadas por arquivos públicos.
O acesso às novas fontes permite quebrar tabus e estereótipos, além de provocar novas interpretações sobre a historiografia da imigração brasileira. Publicações e jornais são registros de intelectuais e escritores imigrantes, desmistificando a ideia de que apenas pessoas iletradas emigravam do Oriente Médio. As mulheres, mesmo no começo do século XIX, aparecem como ativistas e escritoras. Estas histórias estão sendo revisitadas. Porém, grande parte dos testemunhos históricos encontra-se espalhada em acervos familiares, bibliotecas privadas e instituições centenárias da comunidade. Muitas vezes, estão em condições precárias de preservação e correm grande risco de deterioração ou de terminar em descarte.
Então, surgiu a ideia de que a Câmara de Comércio Árabe Brasileira (CCAB) sediasse o projeto no Brasil. Nada mais urgente e fundamental para o registro da diáspora de uma população que contribuiu muito para a formação do país que somos hoje. Além disso, o objetivo vai além de preservar e divulgar todo esse material. O objetivo é, principalmente, produzir conhecimento. Voltei ao Brasil com a missão de convencer uma instituição, cujo foco são os negócios e o comércio, a investir orçamento e material humano em um projeto importantíssimo para a comunidade de descendentes, pesquisadores e interessados, o que estava um pouco fora dos objetivos da Câmara.
Mas a proposta era irresistível, tanto para mim, como à CCAB. Diversos projetos de preservação e digitalização da memória da diáspora sírio-libanesa já tinham sido apresentados à Câmara Árabe. Mas a iniciativa da Biblioteca Digital da USEK era sólida e envolvia a parceria com uma grande instituição de ensino internacional, o envolvimento com um sistema de digitalização já implantado e em funcionamento, uma abrangência ampliada para um diálogo maior com a América Latina, além do fornecimento de equipamento pela USEK. A missão foi facilitada pela sensibilidade e compreensão da diretoria, na época sob a presidência de Rubens Hannun. Alguns pontos foram definidos: (i) a digitalização seria realizada na sede da Câmara Árabe em São Paulo; (ii) no Brasil, a pesquisa deveria ser ampliada para grupos vindos de outros países árabes, principalmente os sírios e palestinos; (iii) devido ao enorme território brasileiro, e ao fato de os imigrantes terem se espalhado por todo o país, a proposta era formar uma rede de parceiros, sob coordenação da CCAB e USEK. Tudo acertado, pronto para assinar o acordo de cooperação. O vice-presidente de Comunicação e Marketing na época, Dr. Riad Yunes, foi ao Líbano em junho de 2018 e o acordo foi formalizado com o reitor da USEK, o Padre Georges Hobeika, juntamente com o professor Roberto Khatlab. A Câmara não só apoiou, mas participou e fez ações para promoção deste acordo. A parceria tem sido frutífera, inclusive com a participação de reitores da USEK em eventos realizados no Brasil.
O projeto tem como objetivo principal a preservação e divulgação da memória árabe no Brasil, através da localização, do levantamento e da digitalização de documentos relacionados à história da imigração em instituições sociais e beneméritas da comunidade síria e libanesa, assim como em acervos públicos e particulares. Os equipamentos, de última geração, foram entregues pela USEK, bem como o treinamento de coordenadores e técnicos. A historiadora Heloísa Dib foi responsável pela implementação do projeto e pelo treinamento da equipe técnica.
Para viabilizar a iniciativa, a Câmara Árabe entra em contato com entidades, famílias, acervos públicos e particulares, solicitando autorização para o acesso a materiais de pesquisa sobre a memória da imigração, tais como: documentos de fundação, atas, periódicos, circulares, fotos e livros diversos, publicados pelos primeiros imigrantes. A partir da análise do material, e de acordo com as orientações da USEK, documentos considerados de interesse para integrar o projeto são submetidos à análise dos coordenadores. Após a definição do que deve ser preservado, o cedente recebe uma relação de documentos que serão digitalizados. O material cedido é devolvido, acompanhado por uma cópia digitalizada com as imagens em alta resolução e sem tratamento final.
A listagem da documentação está disponível na Biblioteca Digital Internacional da USEK. Todo documento digitalizado, página por página, vem acompanhado de uma ficha fotografada junto com o documento, contendo: o logotipo e nome da CCAB, logotipo e nome da USEK e o logotipo e/ou o nome do proprietário do arquivo digitalizado. Fotografias avulsas apresentam marcas d’água da CCAB, USEK e cedente. Dessa forma, será preservado o direito ao proprietário do arquivo, garantindo que qualquer trabalho ou consulta publicada usando um desses documentos indicará sempre a referência do original.
Além disso, as imagens estão disponibilizadas para visualização na Biblioteca Digital Internacional da USEK ou em outras instituições parceiras, em baixa resolução, sem possibilidade de cópia para impressão. Já os arquivos de livros e documentos digitalizados estão disponíveis em formato que permite apenas consulta on-line. A CCAB e a USEK mantêm cópias de segurança dos acervos digitalizados e o acesso às informações é gratuito e on-line, exigindo-se o registro de dados do pesquisador. O objetivo é propiciar consultas e pesquisas particulares ou acadêmicas com fins não lucrativos.
No entanto, se houver finalidade lucrativa, a pesquisa, consulta ou uso de imagem deverá ser previamente submetida pela USEK ao cedente, visando a obtenção da autorização e das condições, inclusive econômico-financeiras, para uso do material. Cabe às instituições parceiras promoverem o correto armazenamento e utilização do acervo, sendo vedada expressamente sua utilização por terceiros sem autorização prévia de cedentes, da USEK e da Câmara Árabe. Sabemos, também, que este é o início de um trabalho sem prazo de encerramento, visto que pretendemos cobrir todo o território nacional. Para isso, necessitamos contar com parceiros acadêmicos e institucionais de confiança, fomentando um trabalho em equipe e em rede.
Neste caminho, a primeira parceria confirmada será estabelecida com a Cátedra Edward Said da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Por meio do acordo, será possível avançar no trabalho de pesquisa e digitalização, abrindo nossos arquivos para novos pesquisadores. Fora de São Paulo, estamos firmando um contrato com a Fundação Tasso Jereissati, que realizará pesquisa e digitalização no Ceará e em estados vizinhos. Contatos estão sendo feitos no Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, com a finalidade de preservar memórias e histórias.
O conjunto de informações contido nos inúmeros documentos pode e deve ampliar diferentes visões históricas, por meio das memórias de pessoas, registradas em diferentes suportes, entre eles fotos, documentos impressos e vídeos. É preciso preservar a história e a memória, antes que elas se percam e esvaneçam no tempo.
Para finalizar, vale destacar o papel da Câmara de Comércio Árabe Brasileira no projeto. Somos anfitriões dessa iniciativa e exercemos um papel relevante na implementação desse registro. Embora seja uma câmara de negócios, presidentes, vice-presidentes e diretoria sempre deram grande apoio ao projeto. São homens e mulheres de negócios e profissionais liberais que entendem a importância da cultura e da preservação da memória da comunidade para promover o respeito e o diálogo entre os povos, confiança fundamental até para atividades comerciais.
*Silvia Antibas é historiadora, vice-presidente de Marketing da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, vencedora do Prêmio UNESCO/Sharjah para Cultura Árabe em 2020, membro da Academia Líbano Brasileira de Letras, Artes e Ciências e membro-fundadora do grupo ArabLatinos.
Link da edição da revista Exilium, na qual o artigo foi publicado.


