São Paulo – Em 1921, pesquisadores do Instituto Oriental da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, começaram a decifrar as 28 mil palavras do idioma assírio, uma das primeiras línguas escritas, que se desenvolveu onde hoje fica o Iraque e que não é falada há cerca de dois mil anos.
Neste dialeto foi escrito o épico Gilgamesh, considerada a primeira obra-prima da literatura. Ele também foi utilizado por Hamurabi para escrever o primeiro código de leis, em 1.600 a.C. Agora, 90 anos depois de seu início, a tradução chegou ao fim.
E chegou pelas mãos da atual editora encarregada pelo “Projeto Dicionário Assírio”, Martha Roth. Aos 58 anos, ela afirma que sente orgulho e satisfação em ver concluído o projeto que lhe consumiu 32 anos, mas não sem um pouco de tristeza. “Também sinto um pequeno senso de perda, pois este esforço, que tanto definiu a minha carreira, agora é passado”, disse ela à ANBA por e-mail.
Os dialetos assírios e babilônios foram empregados pelos povos da Mesopotâmia entre 2.500 a.C. e 150 d.C. São alguns dos povos que desenvolveram a escrita cuneiforme, criada pelos sumérios em 4.000 a.C. Essa escrita era feita com instrumentos utilizados para rachar pedras em pequenas tabuletas de barro.
Parte desta técnica se desenvolveu nas cidades-estado que surgiram na beira dos rios Tigre e Eufrates, onde hoje ficam o Iraque e a Síria. Ao lado dos assírios, os babilônios e acadianos foram as primeiras civilizações a dominar a escrita, porém, com dialetos diferentes. E foi no trabalho desses povos que os pesquisadores se concentraram.
Não foi fácil traduzir tudo. Afinal, alguns verbetes, ou palavras, não são descritos em poucas linhas, como em um dicionário comum. Este dicionário é dividido em 21 volumes e se assemelha a uma enciclopédia. Alguns verbetes têm mais de 10 páginas de explicações.
A complexidade da tradução, pela antiguidade da linguagem, explica parte da demora na conclusão do dicionário, porém, assim como o método empregado pelos assírios, babilônios e acadianos para se comunicar pela escrita, a tecnologia utilizada na pesquisa é simples.
Os pesquisadores não utilizaram aparelhos especiais nem modernas técnicas de raio-x. “Nas primeiras tentativas de compilar o conjunto de dados (milhões de cartões de arquivos) foi usada a reprodução de tecnologias como o polígrafo, mimeógrafo e cópias”, afirmou Martha.
Ela revela, também, que os estudiosos precisaram desenvolver máquinas de escrever para incluir os diacríticos, que são os sinais gráficos utilizados nas palavras para distinguir os sons (acentos, por exemplo). Até cartão perfurado da IBM foi utilizado para decifrar o dicionário nos anos 1960. Em 1980, os pesquisadores começaram a digitar a tradução nos primeiros PCs.
Técnicas e pessoal especializado consumiram investimentos. Martha diz que é difícil definir o quanto foi gasto nestes 90 anos, mas lembra que a agência do governo norte-americano que financia a pesquisa, a National Endowment for Humanities, contribuiu, em 25 anos, com US$ 1 milhão ao fornecer apoio a estudantes de pós-doutorado e funcionários. “Enquanto isso, a Universidade de Chicago bancou os salários de todos os professores residentes e pesquisadores.”
Houve épocas em que o projeto progredia rapidamente. Enquanto uma equipe começava a decifrar um volume, os editores concluíam outro e os originais de mais um livro passavam pela revisão. Mas não foi sempre assim. “Na última década, cada volume que era publicado atrasava os demais projetos e não havia novas edições a caminho. Assim, a equipe de pesquisadores, com cinco ou mais participantes ativos, foi diminuindo até que sobramos apenas eu e um assistente em meio período”, disse Martha.
Agora, com o significado dos antigos símbolos em mãos, pesquisadores poderão estudar parte da história que antes era incompreensível. “O dicionário é verdadeiramente um compêndio enciclopédico de material sobre cultura, história social, feitos científicos e variações linguísticas de muitas culturas sobre as quais nos referimos sob a rubrica de ‘Mesopotâmia Antiga’. Ele é utilizado mais diretamente e essencialmente por estudiosos e estudantes da Mesopotâmia Antiga. É um instrumento essencial para o estudo da Bíblia hebraica e da Antiga Israel. É a obra definitiva sobre os dialetos semíticos do Oriente Próximo, falados e escritos por mais de dois mil anos”, diz Martha.
O trabalho de decifrar este dicionário é o fim de um projeto, mas, provavelmente, o começo de muitos outros. Demorou 90 anos para ser concluído, mais do que a vida de muitos daqueles que trabalharam no projeto, mas é pouco perto dos 2,6 mil anos em que este dialeto foi falado e escrito.
“O Dicionário Assírio de Chicago permanecerá como uma ferramenta fundamental para a compreensão destes textos [antigos], conforme mais deles são escavados no Oriente Médio moderno e publicados por estudiosos. À medida que surgem esses textos, teremos novos pontos de vista sobre nossa própria história e patrimônio cultural”, observou a pesquisadora.
Serviço
Quem quiser pode comprar o Dicionário Assírio. Os preços de cada um dos 21 volumes custam entre US$ 45 e US$ 150, mas também é possível fazer o download gratuito de cada volume pelo site http://oi.uchicago.edu/research/pubs/catalog/cad/.