São Paulo – Quando o jovem palestino Noor vai se esconder de tiros perto de um carro, durante manifestação contra Israel, se vê o para-brisas do veículo atingido e quebrado. Dali a cineasta palestina-americana Cherien Dabis, diretora do filme “Tudo o que resta de você”, parte para contar o que veio antes na história desse adolescente, retratando uma trajetória familiar de dores e perdas determinada pela tomada estrangeira da terra e que ultrapassa gerações entre palestinos.

Foi com esse filme e com essa temática, da Palestina atual, mas também da Palestina de 1940, quando o estado de Israel foi criado expulsando os palestinos de suas terras, e de todas as décadas desde então, que foi aberta na quarta-feira (13) pela noite, no Cinesesc, na capital paulista, com casa cheia, a Mostra Mundo Árabe de Cinema. Agora com 20 anos de caminhada, ela chega na 20ª edição.
“Poder abrir a sessão de hoje e essa edição, que vai até setembro, com um filme palestino, não é só um motivo de orgulho para nós, é a nossa forma de resistência, é a nossa obrigação moral, é a nossa forma de sobreviver face ao apagamento da memória, à desapropriação e à desumanização do outro”, disse na abertura da mostra Natália Calfat, presidente do Instituto da Cultura Árabe (Icarabe), que realiza o festival com o Serviço Social do Comércio (Sesc) e o Banco do Brasil (BB).
Depois de começar com a imagem do adolescente Noor cheio de vida e falante, ao lado do seu amigo, e de fechar as tomadas iniciais com os tiros, o filme “Tudo o que resta de você” foi ao passado da família do jovem e chegou ao seu avô Sharif, na década de 1940, então um pai de família resistindo a deixar a cidade Jaffa para os sionistas, teimando para não largar o seu laranjal exportador de frutas, mas tendo que se render, primeiramente à prisão e depois a viver em local de refúgio.

Salim, um dos filhos de Sharif, se torna pai de Noor. Em uma rotina para sobreviver em meio ao controle israelense e cercada de soldados, Salim dá aulas e tenta garantir conforto e segurança mínimos para a pequena família. A memória do avô Sharif começa a escapar, mas ele ainda fomenta no neto a vontade de ver a Palestina dona de si e livre. Assim neto e vovô cantam e brincam juntos, anestesiando a dor da vida pausada e dos sonhos decepados pelo conflito.
A Mostra Mundo Árabe de Cinema promete ser assim, uma visita pelas realidades do mundo árabe. Um dos títulos, “Sudão, lembre-se de nós”, da diretora Hind Meddeb, é um documentário-poema que registra a juventude sudanesa entre a revolução e o exílio um pouco antes da guerra civil. “A quem eu pertenço”, de Meryam Joobeur, retrata o drama de Aïcha, quando seu filho retorna da Síria com a esposa grávida e muda. A mostra terá 12 filmes inéditos e cinco reexibições, com programação no Cinesesc até 19 de agosto e no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), também na capital paulista, de 16 de agosto até 7 de setembro.
O curador da mostra, Arthur Jafet, também diretor na Câmara de Comércio Árabe Brasileira, apresentou os filmes para o público e falou sobre o papel do cinema. “O cinema do mundo árabe, desde nomes como Youssef Chahine, no Egito, Jocelyne Saab, no Líbano, ou Michel Khleifi, na Palestina, mostrou que filmar não é apenas registrar, é intervir na história, preservar o que desaparece e reimaginar o futuro”, disse Jafet. O curador também falou dos 20 anos da mostra. “Ao longo desses 20 anos, a mostra construiu um espaço de escuta e projeção, no sentido literal e simbólico, de cinemas que desafiam o apagamento”, disse.
Chegando aos 20
Soraya Smaili, uma das fundadoras do Icarabe e idealizadora da Mostra Mundo Árabe de Cinema, também falou sobre chegar até a 20ª edição. Segundo ela, foram anos de muita luta. “Foram aprendizados, nós tivemos que aprender a trazer os filmes, nós tivemos que aprender a traduzir os filmes, nós tivemos que aprender a negociar os filmes e depois, felizmente, nós inspiramos outras mostras”, disse, frisando ainda as várias parcerias construídas para a realização da mostra de cinema.

Uma dessas parcerias foi com a Câmara de Comércio Árabe Brasileira, cujo presidente, William Adib Dib Junior, falou na abertura. A Câmara Árabe é patrocinadora por meio da sua Casa Árabe. “Ao longo de duas décadas, a mostra se consolidou no calendário cultural de São Paulo e tem grande prestígio, mesmo diante de tantas alternativas que a cidade proporciona”, disse Dib. Segundo ele, a mostra contribui para dar visibilidade às múltiplas expressões do mundo árabe em sua diversidade social, política e cultural.
Também a cineasta espanhola Isabel Fernández esteve presente e falou na abertura. Seu filme, “Os Construtores de Alhambra”, está na programação desta 20ª edição. Ela descreveu como uma “sorte” que o filme seja apresentado pela primeira vez no Brasil cercado por produções que falam sobre temas do arco mediterrâneo ou que são dirigidos por diretores árabes.
Também falaram na abertura Érika Mourão Trindade Dutra, gerente de Ação Cultural do Sesc, dizendo que mostras como essa visam valorizar as contribuições das diferentes culturas no Brasil, e Claudio Mattos Brito Filho, gerente geral do CCBB, que se referiu ao poder do cinema de atravessar fronteiras, aproximar culturas e criar pontes entre realidades.
Estiveram presentes no público os ex-presidentes da Câmara Árabe, Rubens Hannun e Osmar Chohfi, o vice-presidente Administrativo da instituição, Nahid Chicani, assim como o tesoureiro Mohamad Abdouni Neto e o diretor Lourenço Chohfi Neto.
Veja a programação completa no site da mostra.
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