São Paulo – A multiplicidade cultural árabe é um dos trunfos da pesquisa desenvolvida pelo doutor em Letras, Felipe Benjamin (à direita na foto acima). O jovem professor se dedica desde 2010 ao árabe dialetal marroquino, mais especificamente o do sul do Marrocos. “A língua árabe é como se fosse mais línguas em uma só. O escrito é padrão. Quando um jornalista fala, por exemplo, usa o árabe padrão. Mas no dia a dia a variação desse árabe é muito grande. Cada país tem uma infinidade de dialetos. Dentro do árabe marroquino, você tem vários dialetos. Nas cidades mais antigas é um, em áreas rurais é outro. Isso está relacionado com as diferentes ondas de arabização dos países”, explica o estudioso.
É o caso da cidade de Essaouira, localizada no sul do Marrocos, e objeto de estudo de Benjamin, onde houve ondas de arabização, com tribos que entraram em contato com povos diferentes ao longo dos anos. Mas, para chegar até lá, o pesquisador teve que iniciar um trabalho pioneiro.
Foi no final da graduação em Letras, pela Universidade de São Paulo (USP), que o jovem, que não tem ascendência árabe, conseguiu uma bolsa inédita para estudar no Marrocos. “Fiquei lá seis meses estudando árabe. A chamada foi de cinco bolsas para o mundo todo. Fui o único da América Latina, os outros eram da Inglaterra ou Estados Unidos”, conta ele, que concluiu essa primeira viagem no início de 2011.
Quando voltou, o estudante seguiu na USP com o mestrado, e a experiência fez com que ele se debruçasse sobre o dialeto falado na região marroquina de Essaouira. O estudo foi inovador no País, onde o maior contato com a cultura árabe se dá com sírios e libaneses. “No Brasil, ninguém estudava a literatura e a história do Marrocos. Quase não se vê nada sobre os dialetos. É uma área nova, quase não há pesquisa sobre o árabe dialetal no Brasil, que é a variedade falada de fato no dia a dia. Trata-se de outra linha de pesquisa. Iniciamos algo novo”, destacou o pesquisador. O ingresso do brasileiro na instituição marroquina abriu, inclusive, possibilidades para outros alunos, que passaram a também ir ao país com a bolsa.
Além do país, outras questões chamam atenção no trabalho de Benjamin. Vista como exemplo de uma imagem de tolerância pela coexistência de diferentes religiões, são escassos os estudos a respeito do dialeto de Essaouira. “Quando comecei a fazer esse estudo sobre os dialetos urbano e rural da cidade, acabei trazendo dados para um atlas dirigido por autores alemães sobre dialetos árabes e que, até então, não citava ainda a cidade. Foi uma maneira do Brasil cooperar com essa área, que é dominada por europeus”, afirmou o pesquisador.
Portuária, a região teve grande influência dos portugueses, que ocuparam o lugarejo, antes mesmo da fundação da cidade em 1765. Mas é a presença de árabes judeus que torna a história e a linguagem em Essaouira mais peculiares. “O Marrocos tem população significativa de judeus berberes e árabes. São judeus que falam árabe, mas é uma variedade específica, conhecida também como judeu-árabe. Essa cidade chegou a ter metade da população muçulmana, metade judia e ainda ter diplomatas e comerciantes de vários países no mundo. Existia, inclusive, um escritório comercial do Brasil na cidade”, explicou.
O pioneirismo do tema também rendeu uma bolsa para doutorado sanduíche na Universidad de Cádiz, na Espanha. “Pude realizar essa pesquisa ao lado de um dos grandes pesquisadores de árabe marroquino, Jordi Aguadé Bofill. Os espanhóis e os franceses são os que mais se dedicam a Marrocos”, detalhou Benjamin, que retornou ao país árabe para fazer entrevistas e trabalho de campo em uma experiência que trouxe muita riqueza antropológica.
Entre as fontes do pesquisador, estão alguns dos últimos judeus que residiram ou residem em Essaouira, além de árabes muçulmanos, pessoas do interior do país, e até mesmo uma tribo que vive nos arredores na cidade. “É um processo, até alguém se abrir e entender o que eu estou fazendo leva tempo. Para um falante árabe, eu ficar perguntando ‘Como se diz tal coisa?’ soa estranho”, revelou ele, que ouviu e gravou dezenas de pessoas.
Para Benjamin, a aproximação se deu quando os marroquinos perceberam a dedicação de um estrangeiro em estudar a sua língua. “Eles se abrem por ver que você se interessou pelo dialeto local. O modo que os marroquinos falam é muito estigmatizado. Muitas vezes você vê um canal árabe, quando um marroquino fala, eles colocam legenda. Isso ocorre também porque no Marrocos, você tem empréstimos lexicais do francês, do espanhol, do berbere. Você tem um contato linguístico grande, a fala local reflete uma grande diversidade”, aponta.
Com o doutorado concluído, em fevereiro deste ano, Benjamin seguiu com seus estudos na Universidad de Cádiz, na Espanha, analisando agora o empréstimo da língua portuguesa ao dialeto marroquino. “É um desdobramento da pesquisa que eu fazia, uma coisa nova. Todo mundo estuda os hispanismos no árabe, mas palavras do português nunca ninguém estudou. São poucas, na verdade, pelo que eu tenho visto, mas como os portugueses estiveram alguns séculos no Marrocos, algumas palavras passaram para o dialeto árabe marroquino”, explicou ele. Embora o número, a princípio, não pareça ser muito extenso, palavras como ‘garfo’, utilizada na cidade de Casablanca, por exemplo, comprovam que a influência portuguesa naquele dialeto existe.
Hoje, Benjamin leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), enquanto segue com as pesquisas. O professor destaca, no entanto, a importância que o programa de especialização em árabe da USP ainda ocupa por ser o único deste tipo no País. “O Brasil tem um único programa de pós-graduação para formar pesquisadores em estudos árabes e letras árabes, sendo algo que se destaca na América Latina como um todo. Os alunos daqui têm ido muito para países árabes, têm feito intercâmbio, trabalho humanitário. Então, os brasileiros hoje contribuem para os estudos árabes e têm dado a cara lá fora”, salienta.
Com seu estudo, o brasileiro já foi convidado para palestrar em universidades como Universidade de Granada, Universidade de Cádiz, Universidade de Coimbra em Portugal, no Instituto Cervantes de Tetuão no Marrocos, e na Universidade de Saragoça. Esta última vai publicar a tese de Benjamin, que também aguarda a publicação de artigos em um livro na Alemanha.
Em meio a uma carreira com passagens em diferentes instituições internacionais, Benjamin acredita também na importância de contribuições que o estudo das línguas vem proporcionando dentro do Brasil. É o caso do trabalho de alunos e professores em ONGs que atendem refugiados no País. “As pessoas falam que investimento em ciência tem que dar retorno, mas no Brasil não se percebe que a contribuição da pesquisa na área de letras é muito relevante para a sociedade, o que vai muito além de toda a tradução da literatura que já foi realizada do árabe ao português. Quando se deu a crise dos refugiados, universitários brasileiros foram para essa linha de frente para ajudar as pessoas com trâmites básicos, ao lado de médicos, advogados e assistentes sociais. Hoje, tanto alunos da UFRJ como da USP lecionam português em ONGs. Inclusive, muitos destes falantes de árabe que vieram, não falavam nem mesmo inglês. Logo, os alunos também auxiliaram como intérpretes comunitários, uma atividade essencial para que refugiados acessem seus direitos básicos. Isso tudo foi possível graças ao investimento público no estudo da língua árabe”, enfatizou ele, que já atuou como intérprete voluntário na Cáritas de São Paulo, auxiliando pessoas em situação de refúgio.