São Paulo – Elas estudaram engenharia, direito, antropologia, matemática, neurociência e ocupam os mais diferentes espaços profissionais no Brasil usando hijabs sobre os cabelos. São mulheres muçulmanas que moram no País e que, com seu jeito de viver, de se posicionar profissionalmente e de encarar a religião, ajudam a construir uma imagem contemporânea das seguidoras do Islã. Assim como o conhecimento foi base para a edificação das carreiras dessas mulheres, é para elas também um dos alimentos e argumentos da fé.
A mineira Letícia Gouvêa, engenheira elétrica convertida ao Islã, faz parte desse grupo. Letícia trabalhou vários anos em uma empresa de energia e chegava a subir em coberturas de prédios com lenço islâmico e roupas longas. Três anos depois da conversão, ela pediu demissão, em uma decisão de quem queria mais da vida profissional. “Percebei que os homens ganhavam 40% mais do que as mulheres e nunca mais voltei ao mercado formal de trabalho”, conta.
O caminho escolhido por Letícia foi o do estudo. Ela foi para a Turquia conhecer mais sobre o Islã e depois para a Síria fazer curso de árabe na Universidade de Damasco. De volta para o Brasil, para a cidade de São Paulo onde já morava, a engenheira construiu uma carreira diversificada. É tradutora do inglês, faz e vende bordados, presta serviços administrativos a uma organização não-governamental e se tornou empresária da apicultura. Também está fazendo uma nova graduação, dessa vez à distância, em Ciências Sociais.
O trabalho com o mel começou por acaso. Abelhas tinham feito colmeia no teto da casa que ela comprou na Serra da Mantiqueira e, cansada de pagar apicultores para tirá-las, Letícia resolveu aprender apicultura. Atualmente, ela tem 27 caixas para produção de mel espalhadas por sua propriedade e em locais arrendados. Sabe fazer todo o processamento do mel, vende o produto a granel e planeja criar uma marca na área. Na hora de cuidar das abelhas ou de vender os bordados que emoldura e comercializa como arte, ela está de hijab.
A bióloga Soha Mohamad Chabrawi (foto do alto) também trabalha de lenço e roupas compridas. Assistente da área de Garantia da Qualidade Halal da Federação das Associações Muçulmanas (Fambras), em São Paulo, ela percorreu um longo caminho de estudos desde o começo da carreira, o que incluiu a finalização do Ensino Médio no exterior e a pesquisa com neurociência no doutorado. Filha de um xeque, líder religioso muçulmano, Soha se inspirou na mãe para as escolhas profissionais. “Minha avó não deixou minha mãe se casar antes de ter uma profissão”, conta.
A bióloga tem três irmãs e todas tiveram a oportunidade de fazer intercâmbio no exterior na adolescência. Soha foi para os Estados Unidos. A escolha pela faculdade de Biologia ocorreu porque ela tinha vontade de pesquisar. E foi o que fez. No mestrado estudou a ação neurológica da droga psicoativa no encéfalo do animal. No doutorado, o tema foi as conectividades na região responsável pelo movimento dos mamíferos. “Sempre gostei muito de neurociência, de estudar o cérebro”, diz. Na Fambras Halal, Soha chegou sem conhecer a área e fez um caminho de aprendizado para integrar o time que cuida da ISO 17.065.
Em Guaíra, no interior paulista, Fatima Adel Khatib leciona matemática de hijab em uma escola, enquanto planeja a abertura de sua empresa de engenharia e faz pós-graduação na área. De família muçulmana de origem libanesa, Fatima primeiro se graduou em Matemática e há dois anos concluiu Engenharia Civil. Fez a última graduação de véu nos cabelos. “Nunca tive problemas com isso”, conta. O plano de abrir uma empresa de engenharia, ela desenvolve com uma futura sócia. A ideia é conciliar o negócio com o magistério e não abrir mão do hijab, mesmo que o trabalho seja em obras de construção.
Silvia Ferreira também faz parte do grupo de muçulmanas brasileiras de hijab que se destaca profissionalmente. Ela não atua diretamente na área que estudou, mas está à frente da maior loja online de moda árabe no Brasil, a Silvia Arabic Fashion. Convertida ao Islã há nove anos, Silvia estudou Direito e fez pós-graduação em Direito Internacional. Há dois anos, um ano depois de ter se casado com um egípcio e se mudado para o país árabe, abriu a loja online. As peças vendidas são 95% do Egito e 5% da Turquia. Ela tem um estoque no Brasil e viaja ao país pelo menos seis vezes ao ano. Quando é preciso fazer algum desembaraço aduaneiro, é Silvia quem resolve. A loja forneceu roupas para o elenco da novela Jezabel, da TV Record.
Silvia conta que apesar de não estar trabalhando com Direito, o estudo na área a ajudou a criar um negócio bem profissional. “Tenho estratégia de marketing, planejamento, plano de crescimento”, relata. A loja tem 80 mil seguidores no Facebook e a rede social a aponta como a maior na América Latina em roupas árabes. “Gosto de moda, sempre fui consumidora de moda e de produtos de beleza”, afirma, sobre a escolha pelo negócio. Silvia pretende abrir uma loja física no Brasil no futuro, mas também quer continuar estudando. Está tentando entrar no mestrado em Direitos Humanos sob a perspectiva do Islã, no Egito. “Acho que é importante ter um plano B na vida, não me custa nada continuar estudando”, afirma.
Na cátedra
Dentro do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), outra brasileira de longo currículo ensina com os cabelos cobertos. É Francirosy Campos Barbosa, um ícone para as muçulmanas que a cercam. Francirosy é convertida, passou a usar o lenço na cabeça há pouco tempo e sintetiza um pouco do que a nova geração de mulheres de véu aspira em destaque profissional e de voz. Ela é professora livre docente e atua na graduação e pós do Departamento de Psicologia da USP de Ribeirão Preto. Seu principal tema de pesquisa é o Islã.
Formada em Ciências Sociais, com mestrado e doutorado em Antropologia e pós-doutorado em Teologia Islâmica pela Universidade de Oxford, Francirosy coordena o grupo Gracias, de estudos islâmicos e árabe, lidera um grupo de mulheres muçulmanas intelectuais chamado Maryam e é organizadora do livro “Olhares femininos sobre o Islã: etnografias, metodologia e imagens”, entre outras várias atividades ligadas à academia e à religião muçulmana.
Muito próxima do universo feminino muçulmano, Francirosy afirma que atualmente, entre as muçulmanas nascidas no Brasil ou revertidas, as donas de casa são exceção, a maioria trabalha fora. Mas ela fala que assim como entre as demais mulheres, há desde as muçulmanas que estão satisfeitas em ficar em casa e cuidar dos filhos, as que estão satisfeitas em trabalhar fora, e as que estão em uma situação ou outra insatisfeitas. Há, no entanto, discriminação com as muçulmanas que usam véu no mercado de trabalho, segundo a percepção dela. “Existe preconceito com o véu”, diz. Das 32 muçulmanas que formam o grupo Maryam, 19 usam o hijab.
Algumas entrevistadas pela ANBA para a reportagem relataram perceber preconceito ao procurarem vagas, mas nenhuma recuou do uso do lenço em função disso. Soha acredita que o hijab foi motivo de não ter sido contratada em uma instituição, após aprovação em todo o processo seletivo. “Me perguntaram se eu tiraria”, conta, sobre a entrevista final. Apesar de ser de família muçulmana, Soha passou a usar o véu só quando se sentiu preparada, há dez anos. Mesmo percebendo algum efeito nas entrevistas de emprego, não recua da escolha.
De hijab nos cabelos
Francirosy, convertida há seis anos, começou a usar o hijab em março deste ano, depois do atentado em mesquita da Nova Zelândia. Ela achou que estava muito confortável andar sem o véu. As pessoas nem sempre sabiam que era muçulmana. Primeiro usou o lenço com o cabelo à vista, mas depois optou pelo modelo mais fechado. “Estava faltando um pedaço da religião, era como se eu não fosse uma muçulmana completa”, fala, sobre o período anterior ao hijab.
Fatima usou o lenço por um período, parou e depois voltou a utilizar novamente. Ela afirma que usa pela fé, porque está escrito no Alcorão, e sabe que com ele representa não apenas a si mesma, mas também sua religião. “É minha identidade, assim como as pessoas têm liberdade para usar saia curta, eu tenho para usar o véu. O véu mostra quem eu sou”, diz. Ela também acredita que com o véu, se dá a conhecer pelas ideias e opiniões e não pelo corpo.
Letícia usa hijab desde que se converteu e diz que se tornou mais tolerante depois de passar a vestir a roupa islâmica, pelo desafio que representa. “Quando comecei a usar foi difícil, sou muito calorenta, quando era pequena não gostava nem de fita no cabelo”, conta. A veste acaba servindo também de limite para ela própria, que em função da roupa se contém de entrar em lugares que acredita não serem benéficos ou de responder a ofensas de alguém na rua com palavrões, por exemplo. “Usando o lenço, eu não carrego só a Letícia”, diz.
Para Silvia, a adoção do hijab foi um processo lento. Ela se reverteu há cerca de nove anos. Primeiro usava calças e vestido longo, depois adotou as mangas longas. Há quatro anos, quando concluiu um curso sobre o Islã na Universidade de Al-Azhar, no Egito, passou a usar a roupa completa, inclusive cobrindo os cabelos. Ela já se sentia preparada. “É todo um estereótipo que você carrega”, afirma, contando que passou a ser identificada como estrangeira no Brasil. No Egito, também a identificam como estrangeira, relata.
O estudo primeiro
As convertidas ao Islã entrevistadas pela ANBA optaram pela religião após um processo de aprofundamento na religião. Foi o caso de Letícia. Percebendo que o tema não estava no currículo das escolas, ela resolveu estudar o Islã. “Achei muito inteligente como os muçulmanos foram espalhando o Islã pelo mundo, levavam conhecimento e progresso por onde iam”, afirma. Isso a impulsionou a chegar ao Alcorão, que a cativou definitivamente. Silvia Ferreira estava em um período difícil da sua vida, quando recebeu pela internet um link para escutar textos do Alcorão. “Comecei a escutar, pesquisar, estudar, ler”, conta.
Elas seguem buscando o conhecimento da religião. Além do conteúdo oferecido nas próprias mesquitas, vão atrás de informação e formação no Islã oferecidos de forma presencial e online no Brasil e no exterior. “O que a gente aprende aqui no Brasil é muito raso, muito básico”, afirma Francirosy. A antropóloga se mostra entusiasmada com a nova geração de jovens muçulmanas, que buscam mais conhecimento sobre o mundo em geral e sobre sua própria religião, e acredita que elas ocuparão cada vez lugares melhores na sociedade. “Você tem que baixar a cabeça para Deus, não para o homem, e isso não é feminismo, é Islã”, diz.