São Paulo – Países do Norte da África têm indústrias cinematográficas fortes e estruturadas, com espaços de distribuição e consumo maiores, facilitados pelo grande alcance do idioma árabe. Foi o que disse Beatriz Leal, co-curadora da Mostra de Cinemas Africanos, durante bate-papo sobre a indústria cinematográfica árabe-africana no último sábado, após a exibição do filme Sofia, no Cinesesc, em São Paulo. A pesquisadora Alessandra Meleiro também participou do debate. A outra curadora da mostra é Ana Camila Esteves.
“Colônias da França até a década de 1960, [alguns dos] países do Norte da África têm características parecidas em termos de produção cinematográfica e que os diferenciam dos outros países africanos, mas ainda são fortemente ancorados com suporte financeiro africano e europeu”, disse Meleiro. No entanto, países árabes do Golfo vêm financiando cada vez mais filmes africanos, de acordo com Leal.
Dentre os países subsaarianos, se destacam as indústrias da África do Sul e Nigéria (conhecida como Nollywood). “Os outros países africanos têm produções muito pequenas”, disse Leal.
Mais de metade dos filmes da Mostra de Cinemas Africanos são dirigidos por mulheres, com temas diversos. “São temas muito bonitos que queríamos tratar, e é curioso que não é necessário que uma mulher fale só de temas femininos e vice-versa. Outros filmes não árabes da mostra também revelam isso”, disse Leal.
A curadora pontuou que produções africanas financiadas por países europeus geralmente tinham que filmar ao menos uma parte do projeto na Europa. “Havia muitos filmes [africanos] de viagem, e hoje são ali, as produções europeias estão deixando que tudo seja filmado no país africano”, contou.
Um exemplo de produção triangular é o filme Sofia, filmado no Marrocos pela marroquina Meryem Benm’Barek, mas financiado pela França e pelo Catar. Para Leal, a questão geopolítica no meio cinematográfico é muito importante. “As cooperações Sul-Sul são mais importantes do que nunca neste momento”, afirmou.
Segundo Meleiro, são produzidos mais de 150 filmes no Brasil por ano e cerca de metade não chega a ser exibida em salas de cinema. “A questão da distribuição é o que dificulta que os filmes cheguem ao público, talvez fosse necessário investir mais nessa parte do processo”. A pesquisadora informou que a indústria cinematográfica africana vem crescendo de dez anos para cá, e vem ganhando aderência em mostras e festivais no continente e no mundo.
A Mostra de Cinemas Africanos é uma parceria do Sesc com a Ana Camila Comunicação e Cultura, e termina nesta quarta-feira (17). Depois de São Paulo, a mostra segue para Salvador, no Circuito Saladearte, em setembro, e Porto Alegre, na Cinemateca Capitólio, em outubro.
Sofia
Primeiro longa-metragem de Meryem Benm’Barek, “Sofia” se passa em Casablanca e conta a história de uma jovem de vinte anos que descobre estar grávida só quando começa a ter contrações, e sua bolsa estoura durante um almoço em família. Ela sofre de negação da gravidez, um estado psíquico em que a mulher não sabe que está grávida, nem cresce a barriga.
Não bastasse a complexidade de uma gravidez não sabida seguida de um parto, no Marrocos a lei não permite que haja relações sexuais fora do casamento, sob pena de até um ano de prisão (Artigo 490 do código penal marroquino). O hospital que a recebe concede um prazo de 24 horas para que ela forneça a documentação do pai da criança antes de informar o crime às autoridades.
No debate, Meleiro e Leal falaram sobre o multilinguismo no Marrocos como forma de estratificação social. O filme mostra que quem fala bem o francês no país geralmente é de uma classe social mais alta e privilegiada (como a tia e a prima de Sofia), que tem acesso a estudos e viagens para outros países, enquanto quem tem origens mais modestas fala apenas o árabe (o noivo Omar e sua família – sua mãe não é nem alfabetizada) e, em alguns casos, o berbere, também idioma oficial.
A própria diretora é uma expatriada, teve acesso a outros idiomas e culturas, viveu e estudou na França e na Bélgica. Barek tem 34 anos e, antes de “Sofia”, dirigiu cinco curtas-metragens. “Essa característica de formação da diretora é comum em outros diretores da mostra, a maioria são expatriados, que tiveram oportunidades”, disse Meleiro.
A questão de gênero e a força do patriarcado como organização social no país ficam em segundo plano no filme, segundo Leal. Para ela, a interseccionalidade de classe é o ponto mais importante, já que o noivo Omar (vivido por Hamza Khafif), de classe baixa, se submete à situação do casamento para ajudar sua família. “Sofia também fala de masculinidades muito frágeis, em um estado muito complexo; o homem está aprendendo a reconfigurar-se”, disse Leal.
Vivida intensamente pela atriz iniciante Maha Alemi, Sofia tem que tomar decisões difíceis em meio a situações muito delicadas. Uma espectadora comentou no bate-papo que “Sofia tem uma atitude injusta diante de uma sociedade que é injusta com ela”. Para a assessora de produção da mostra, Jusciele Oliveira, o filme revela que “o jogo da contemporaneidade é a negociação”. “Sofia” conta ainda com as atuações do marroquino Faouzi Bensaïdi, que faz o pai da protagonista, e da belga de pai marroquino e mãe espanhola, Lubna Azabal, que interpreta sua tia.
Assuntos íntimos e familiares, drama social e de gênero, visões eurocêntricas e árabe-muçulmanas de mundo. Todos estes elementos estão presentes em “Sofia”.