Por Mario Veraldo*
Historicamente, o Brasil tem impulsionado suas exportações com base em uma tríade consolidada: China, Estados Unidos e União Europeia. Essa concentração garantiu escala, mas também deixou o país vulnerável a mudanças políticas, ciclos tarifários e à fragilidade das cadeias de suprimento de longa distância. Em 2024, o Brasil exportou cerca de US$ 337 bilhões em bens, um número expressivo, porém fortemente dependente de poucos compradores.
Se a próxima década exigir não apenas crescimento, mas também resiliência, será preciso ampliar o campo de visão. O Oriente Médio, frequentemente reduzido ao estereótipo de “região petroleira”, está silenciosamente se transformando em um dos corredores comerciais mais estratégicos do planeta. Suas economias vêm investindo de forma inédita em portos, logística e segurança alimentar. Para o Brasil, o potencial da região não se resume a um único polo ou aposta: trata-se de um caminho de desenvolvimento em mercados diversos e complementares, capazes de redistribuir riscos e redefinir a criação de valor.
Uma lição do passado
Há mais de vinte anos, participei da equipe que lançou o primeiro serviço regular de transporte por contêineres entre o Brasil e o Oriente Médio. O sucesso foi imediato, pela primeira vez, uma ampla gama de exportadores brasileiros, de produtos agrícolas a manufaturados, pôde acessar diretamente os mercados do Golfo. Do outro lado, os importadores passaram a contar com um fornecimento confiável do Brasil. Os benefícios mútuos foram claros e duradouros.
Essa experiência traz uma lição simples: quando se constrói a esteira logística correta, o comércio naturalmente acompanha. Hoje, o Brasil tem a oportunidade de estruturar uma nova esteira, que transporte não apenas soja e carne bovina, mas uma gama diversificada de produtos e serviços aos portos abertos do Oriente Médio.
Por que o Oriente Médio importa agora
A lógica comercial começa pela comida, o agronegócio é a ponte natural do Brasil com a região. Em 2024, o setor representou cerca de metade das exportações nacionais. Já os países do Golfo importam até 85% de seus alimentos, tornando o Brasil um fornecedor essencial de grãos, proteínas e açúcar.
O comércio já é expressivo, no ano passado, o Brasil exportou US$ 23,7 bilhões para países árabes, gerando um superávit recorde de US$ 13,5 bilhões. Só para os Emirados Árabes Unidos, as exportações chegaram a US$ 4,5 bilhões, com o envio de carne de frango aos Emirados e à Arábia Saudita entre os principais volumes, mas a oportunidade vai muito além de carne e grãos.
O mesmo corredor que movimenta alimentos pode transportar bens industriais, cooperação energética (como biocombustíveis e insumos petroquímicos), máquinas e até serviços ligados à construção, infraestrutura e logística. O objetivo não é trocar uma dependência por outra, mas cultivar um portfólio comercial mais equilibrado e com foco em crescimento, ampliando o mapa de destinos brasileiros de forma estratégica.
As novas dinâmicas da região
Duas mudanças estruturais tornam este momento particularmente propício. Primeiro, o Oriente Médio está investindo para se tornar um ponto de convergência do comércio global. A Estratégia Nacional de Transporte e Logística da Arábia Saudita prevê elevar o volume portuário a 40 milhões de TEUs até 2030, com expansão simultânea do transporte ferroviário e aéreo. Nos Emirados, a DP World movimentou um recorde de 88,3 milhões de TEUs em 2024, consolidando o Golfo como um elo crucial nas cadeias de suprimento globais.
Segundo, a segurança alimentar passou a ser tratada como infraestrutura crítica. Governos da região estão investindo bilhões em redes de refrigeração, armazéns alfandegados e compras estratégicas. Para o Brasil, isso representa uma demanda de longo prazo sustentada por infraestrutura moderna, o cenário ideal para garantir participação de mercado.
Os gargalos
Apesar da visão clara, duas barreiras persistem: logística e financiamento. Na logística, as rotas entre Brasil e Golfo ainda são longas e frequentemente indiretas. A imprevisibilidade nos prazos de entrega e os custos elevados reduzem a competitividade. Gargalos domésticos nos portos brasileiros agravam o problema, com atrasos na documentação e tempo de permanência afetando a margem dos exportadores.
No financiamento, os desafios incluem risco cambial, acesso limitado a instrumentos de crédito e complexidade regulatória. O déficit global de financiamento ao comércio gira em torno de US$ 2,5 trilhões, afetando especialmente pequenas e médias empresas, justamente a base da exportação diversificada brasileira. Paradoxalmente, os índices de inadimplência nesse tipo de financiamento estão entre os mais baixos do setor bancário, mas restrições regulatórias e de capital continuam a limitar sua oferta.
Estratégia centrada no corredor
Para aproveitar esse momento favorável no Oriente Médio, o Brasil deve adotar uma estratégia centrada no corredor, e não apenas na carga. Isso significa:
- Rotas e transbordos confiáveis: partidas semanais com datas fixas, alinhadas aos calendários sazonais do Brasil, combinadas a redes estáveis de distribuição nos países do Golfo;
- Infraestrutura de frio e armazenagem alfandegada nos dois extremos: permitindo que exportadores posicionem estoques com antecedência e aproveitem picos de demanda;
- Financiamento com compartilhamento de risco institucionalizado: uso padronizado de cartas de crédito, financiamento de cadeia produtiva e programas multilaterais voltados ao fluxo Brasil–Golfo;
- Confiabilidade contratual: cláusulas que incentivem pontualidade e penalizem atrasos, evitando que o exportador assuma sozinho os riscos logísticos;
- Diversificação da pauta exportadora: indo além de proteínas e grãos, incluindo alimentos processados, embalagens, máquinas e biocombustíveis. O corredor se fortalece à medida que sua composição se torna mais variada.
Diversificar com inteligência
Alguns podem argumentar que o Brasil já possui demanda suficiente na China, EUA e Europa, mas diversificação não se trata do volume atual de pedidos, trata-se de mitigar a volatilidade futura. Um único ciclo tarifário, crise sanitária ou conflito geopolítico pode fechar mercados da noite para o dia. Ter uma base de compradores mais ampla é uma forma de amortecer esses choques.
O horizonte de investimentos de longo prazo no Oriente Médio combina com a necessidade brasileira de previsibilidade. E a conexão da região com a África e o Sul da Ásia faz dela mais que um destino final: torna-se uma plataforma para o Brasil acessar mercados secundários com menor esforço incremental.
A hora de agir
O sucesso dessa estratégia significaria reduzir o risco de concentração comercial do Brasil, aumentar a confiabilidade do corredor, expandir o financiamento ao comércio e elevar o valor agregado da pauta exportadora. Também representaria integrar o Brasil à própria arquitetura da estratégia comercial do Oriente Médio, que é projetada para ser resiliente, diversificada e central nos fluxos globais.
Da última vez em que o Brasil apostou nesse corredor, há duas décadas, os resultados foram imediatos e duradouros. O primeiro serviço de contêineres gerou acesso, confiança e crescimento. Hoje, o desafio é maior, mas o prêmio também.
O Brasil está diante da oportunidade não apenas de exportar mais, mas de exportar melhor. A tarefa agora é construir uma nova esteira logística, que conecte os mercados alternativos do país diretamente às portas abertas do Oriente Médio. Se essa conexão for feita com planejamento e intenção, ela poderá redefinir o papel do Brasil na economia global para as próximas gerações.
*Mario Veraldo é CEO e cofundador da MTM Logix e especialista em logística global e inovação digital, atuando como consultor de governos, organizações, fundos globais e executivos de grandes empresas.


