Cristina Indio do Brasil, da Agência Brasil
Rio – O libanês Joseph Salloum Ghanem é um homem dividido: “O sujeito fica com dois corações. Um coração libanês e outro brasileiro”. Joseph chegou ainda adolescente ao Brasil em 1947. Até hoje se divide no amor às duas pátrias. Depois de trabalhar por 10 anos no Brasil, ele resolveu fazer uma viagem ao Líbano. Com a insistência da mãe de que precisava ter a própria família, conheceu por lá uma patrícia e voltou casado. Aqui, tiveram quatro filhos. “Graças a Deus, todos bem sucedidos”, diz, orgulhoso.
Joseph reconhece: a vida hoje está melhor que nos primeiros anos de Brasil, de muita luta. Ele não sabia falar português. Para conhecer melhor o país, começou a trabalhar em uma loja de tecidos. Como já estava no ramo, passou a fabricar camisas. “Estava dormindo e vi uma camisa pendurada em um prego no quarto. Separei as partes e fiz um molde. Comecei a aperfeiçoar: fiz uma confecção de camisas e depois de saias”.
A produção era vendida de porta em porta e em feiras nas ruas do centro da cidade. Logo abriu um “sobrado” e, em 1956, já era dono da loja que até hoje mantém em um dos mais conhecidos centros comerciais populares do Rio de Janeiro, a Saara – Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega.
Como Joseph, centenas de libaneses, turcos e sírios adotaram a região que representa o principal endereço da colônia na cidade. Os Mussalem são outra família já tradicional na região, com uma rede de lojas de produtos de alimentação, principalmente grãos e especiarias próprios da culinária árabe. As lojas são uma espécie de ponto de referência nesse tipo de comércio.
Said Mussalem, um brasileiro filho de árabes, disse que as lojas já estão passando pela terceira geração da família. “Meu filho faz o curso de Administração e trabalha aqui também”. Ele explica que o árabe é muito ligado no comércio, costuma acompanhar tudo o que está acontecendo na loja e se preocupa muito com o atendimento ao cliente. “Tem que tratar bem, senão ele não volta. E não podemos enganar ninguém”, ensina Said.
Território de paz
Ênio Bittencourt é mineiro, mas casado com uma filha de sírios. Há 17 anos, é presidente da Saara. A convivência acaba misturando cada vez mais os brasileiros e árabes. Segundo o mineiro-árabe, atualmente, das 1250 lojas espalhadas por onze ruas, 60% são de gente da colônia, que convive bem, segundo ele, com coreanos e japoneses, hoje donos de 10% daquele comércio.
No Saara, diz ele, não se encontram traços daquele que é um dos maiores conflitos contemporâneos, a disputa entre árabes e judeus. “Quando há algum problema, todos procuram se ajudar, tanto árabes como judeus”, diz o presidente.
A brasileira Lydia Molina tem 88 anos. Vinte deles, passou na rua da Alfândega, onde foi morar em 1945, quando se casou com Jacob Molina, judeu que veio também muito jovem para o Brasil. Depois de ficar viúvo de Léa, também judia, ele se casou com Lydia. Os dois moravam em um pequeno prédio de quatro apartamentos, todos ocupados por casais de judeus. A rua que um dia se chamou Caminho de Capueruçu sabia receber toda essa gente de fora.
Dona Lydia conta que a rivalidade entre árabes e judeus é algo que nunca sentiu por lá. “Aqui na rua da Alfândega faltava muita água. O seu Helal, um árabe, cedia uns baldes de água. Ele era tão bom que mandava um empregado levar escada acima até a porta do apartamento, porque eu morava no primeiro andar e tinha que subir as escadas”, lembra, agradecida.
O marido, Jacob, tinha uma loja de roupas masculinas na rua Regente Feijó, uma das transversais da rua da Alfândega. Hoje, Lydia mora no Flamengo, um bairro da zona sul, e só saiu de lá porque o prédio, que pertencia à família Marum, foi vendido e todos precisaram se mudar.
Dominada pelos descendentes de povos que vivem do comércio há milhares de anos, a Saara também adotou o princípio de que o segredo é a alma do negócio. Ninguém ali revela o faturamento do centro comercial. O presidente da associação diz que a região chega a empregar 10 mil pessoas por ano e é um dos locais de maior arrecadação de impostos sobre o comércio no estado.
Ênio Bittencourt lembra que a Saara chegou a ser ameaçada de sumir em 1962, quando o então governador Carlos Lacerda queria construir um viaduto no local. Ele foi convencido a mudar de idéia pelos donos das lojas.
A hereditariedade no comando das lojas, principalmente as mantidas pelos descendentes de árabes, deve garantir vida longa à Saara, calcula Ênio. Joseph Salloum Ghanem resume o sentimento da colônia que escolheu o Brasil e, em particular, o Rio para morar. “Eu trouxe o aroma do cedro do Líbano e fui recebido aqui com os braços abertos do Corcovado”, diz ele, em referência ao Cristo Redentor, um dos principais cartões postais da cidade.

