São Paulo – Quando a pandemia causada pelo novo coronavírus levou ao fechamento de fábricas e à redução da movimentação de cargas, entre março e abril, países que dependem da importação de alimentos aumentaram seus estoques de produtos básicos, como proteína e grãos. Alguns passaram a avaliar a possibilidade de produzirem seus próprios alimentos ou acelerar projetos que já estavam em curso para, no longo prazo, não depender mais das importações e controlar seus estoques. Nem sempre, porém, garantir o próprio alimento é possível.
Como exemplo do esforço em busca da segurança alimentar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos têm esse desafio no topo de suas prioridades há alguns anos. Os Emirados investem em pesquisa e processamento de alimentos e possuem até uma fazenda vertical de hortaliças no emirado de Sharjah. A Arábia Saudita, por sua vez, vai destinar mais US$ 3,2 bilhões ao Programa de Desenvolvimento Rural para os próximos anos. A meta é ampliar o processamento de café, entre outros produtos.
Esses projetos já estavam em curso, mas ganharam mais força no meio da pandemia. Em maio, a Arábia Saudita comprou parte de um fornecedor indiano de arroz. Também nos últimos meses, os Emirados adquiriram 50% de uma das principais companhias do agronegócio do Oriente Médio, que produz frutas, alimentos para animais, arroz e farinha. Os dois investimentos foram feitos por órgãos governamentais dos dois países.
Professora Associada da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), e pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), Sílvia Helena Galvão de Miranda, afirma que, independentemente de crises, todos os países mantêm políticas de segurança alimentar. Porém, em momentos de instabilidade, essa preocupação se torna maior. Na sua avaliação, há uma tendência de que as nações busquem formas de expandir sua produção doméstica de alimentos.
“É uma realidade que certos países e até extensas regiões do mundo necessitam da importação de alimentos, sob risco de desabastecimento da população. Dificuldade de estruturar um sistema de produção, e mais do que isto, (dificuldade de estruturar) um sistema de distribuição de alimentos é uma das razões em vários países da África subsaariana, por exemplo. Em outros, como em países do Oriente Médio, há limitações naturais em termos de disponibilidade de terra e de água suficientes”, afirma a professora.
Coordenador do curso de Administração com linha de formação em Sistemas Agroindustriais do campus Lagoa do Sino da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Fábio Grigoletto afirma que produzir alimentos é um desafio que ultrapassa o desejo ou a estratégia de uma nação.
O professor afirma que produzir alimentos não é simples, pois envolve um complexo sistema formado por produtores, fornecedores de insumos agrícolas, indústrias, tradings, varejistas e consumidores. “Essas redes não se constituem rapidamente, além de dependerem de investimento público e privado em pesquisa e infraestrutura, algo que também leva tempo a ser construído, quando o é”, diz.
Grigoletto observa que nações africanas como Nigéria, Ruanda, África do Sul, Gana, Costa do Marfim e Quênia têm vivenciado processo de intensificação tecnológica da agricultura, predominantemente baseada em pequenas unidades familiares de produção.
“No caso dos climas áridos e temperados, estes favorecem cadeias produtivas de nicho como tâmaras e cereais em áreas próximas ao Mar Vermelho, na Arábia Saudita, e cereais e pecuária de leite em sistemas produtivos orgânicos, na Dinamarca. No primeiro caso, o rol de cadeias produtivas consolidadas não satisfaz integralmente as necessidades alimentares das populações, tornando os países árabes o principal destino da proteína animal – carne bovina e frango – produzida no Brasil. No segundo caso, a Dinamarca, a produção é voltada majoritariamente para o mercado interno”, afirma. “Eu diria que, dentre os mencionados, os países árabes, em decorrência de questões climáticas, são os que apresentam maior dificuldade em produzir alimentos”, diz Grigoletto.
Ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, e sócio da BMJ Consultores Associados, Welber Barral afirma que nos primeiros meses da pandemia houve um temor global de desabastecimento e, por isso, alguns países ampliaram seus estoques, o que elevou o preço das commodities. “Em julho, viu-se que não ocorreu desabastecimento. Não houve uma crise alimentar. Há sim, uma crise por falta de renda”, afirma. “A pandemia mostrou grande capacidade de resiliência logística mundial”, diz Barral. Grigoletto também alerta para a fome em decorrência da pobreza e cita o Brasil como exemplo: mesmo sendo um dos maiores produtores mundiais de alimento, 10 milhões de pessoas passavam fome no País, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada em 17 de setembro.
Oportunidades para o Brasil
E como o Brasil, um dos maiores produtores mundiais de alimentos, se coloca neste cenário? “Quando se fala em segurança alimentar, o desafio ainda é enorme para o próprio País. Não somente como exportador agroalimentar, mas também no suprimento de alimentos de forma mais equânime também para a população brasileira, inclusive do ponto de vista de reduzir as discrepâncias regionais nos índices sociais, vinculados à alimentação e saúde humana. No âmbito internacional, o desafio, além de manter índices de produtividade crescentes que garantam competitividade de preços no mercado externo, é coordenar o sistema produtivo para consolidar uma imagem de produtor agropecuário e exportador que esteja alinhada à sustentabilidade”, afirma Silvia.
Barral, por sua vez, observa que o Brasil é reconhecidamente um líder na produção de alimentos e desenvolvimento de tecnologia no agronegócio. Tem empresas muito agressivas e dinâmicas que já atraíram e poderão voltar a atrair mais investidores. Os chineses, observa Barral, investem no setor a partir da infraestrutura na produção agropecuária. A Companhia de Investimento em Pecuária e Agricultura Saudita (Salic, na sigla em inglês) é um dos principais acionistas do frigorífico brasileiro Minerva Foods.
“Vejo o copo meio cheio e meio vazio. O Brasil tem grande tecnologia embarcada no setor e deverá se tornar o maior produtor mundial de alimentos. Tem um produto de alta qualidade e elevada reputação. O copo está meio vazio, porém, quando se avalia a questão ambiental, que é muito preocupante para a União Europeia e causa danos de imagem, além dos ambientais, no longo prazo. Além disso, o setor do agronegócio no mundo todo é o mais protecionista e o mais protegido. O Brasil enfrenta o risco de ser alvo de medidas protecionistas, de barreiras não tarifárias e precisará estar atento, brigar na Organização Mundial do Comércio (OMC), se colocar diante deste desafio”, afirma.
*Reportagem de Marcos Carrieri, especial para a ANBA