São Paulo – A quantidade de aviões nos céus vai praticamente dobrar nas próximas décadas, a demanda por viagens de passageiros deverá atingir 10 bilhões por ano em 2050, mas as emissões líquidas de gases causadores do efeito estufa na aviação terão de atingir zero, ou seja, seguir na contramão do crescimento desta atividade. O protagonista desta mudança deverá ser um ator bem conhecido: o combustível. Os investimentos do setor estão direcionados para o combustível sustentável de aviação, conhecido como SAF, que é proveniente de diversas fontes, e emite 80% menos dióxido de carbono do que o querosene de aviação (na imagem acima, avião da Boeing é abastecido com SAF).
O motivo para a mudança de rota no crescimento das emissões de dióxido de carbono é justamente fazer com o que o setor alcance o que foi determinado pelo Acordo de Paris em 2015: que o aquecimento global não eleve a temperatura média do planeta acima de 1,5°C. Segundo dados da Agência Internacional de Energia, o setor foi responsável por 2% das emissões em 2022, ano ainda de pandemia, em que os voos eram 80% do nível convencional.
As projeções da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês) indicam que em 2025, 381 milhões de toneladas de gás carbônico deverão deixar de ser emitidos pelo setor. Desse total, 97% virão de compensações pelas emissões e 2% por meio do uso de SAF. Esses percentuais vão mudar gradualmente para que cresça a participação das fontes de emissão zero e de compensação das emissões até 2050, quando o uso de SAF deverá corresponder a 65% das reduções das emissões, em um ano em que o setor estima que serão diminuídas as emissões de mais de 8,1 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera.
Ainda segundo os dados da Iata, a produção de SAF deverá somar 8,1 bilhões de litros em 2025, volume que deverá atingir 449 bilhões de litros em 2050. As fontes que formam o SAF são variadas: óleo de cozinha usado, resíduos urbanos, resíduos agrícolas e plantas que contenham açúcares, entre alguns exemplos.
Para chegar aos tanques de combustível dos aviões, porém, o SAF precisa atender a um requisito fundamental: ele precisa ter as mesmas características do querosene de aviação, para que os motores das aeronaves não precisem ser adaptados e para que seu funcionamento não seja comprometido.
O SAF já existe e já é empregado em voos comerciais, mas a uma escala ainda muito baixa diante do desafio e da necessidade de descarbonização do setor. Custo e preço final, inclusive, são os principais desafios para a implantação do produto. De acordo com a gerente de Sustentabilidade da Latam Brasil, Lígia Sato, o SAF tem um potencial “enorme” para impulsionar a agenda de descarbonização. Mas ela observa que, hoje, a produção de SAF atende a apenas 0,15% da demanda mundial e seu custo é até cinco vezes maior do que o do combustível de aviação convencional.
Professor de Transporte Aéreo e Aeroportos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP) e piloto, Jorge Eduardo Leal Medeiros, afirma que aproximadamente 40% dos custos de uma empresa aérea são com o combustível, que custa em média R$ 3,50 por litro. Nos tanques de um avião de corredor único, como o Boeing 737 MAX 8 ou o Airbus A320neo, cabem aproximadamente 26 mil litros de combustível. As duas aeronaves concorrem no mesmo segmento. No Boeing cabem entre 162 e 178 passageiros em duas classes. No Airbus, entre 150 e 180, de acordo com as especificações técnicas dos fabricantes.
O setor investe em pesquisa e a Iata incentiva a busca por novos modelos de avião e outras fontes de energia, como elétrica e hidrogênio, mas elas não deverão mover grandes aeronaves dentro dos próximos anos.
“Hoje não se pode substituir o avião. Ele tem uma importância muito grande no desenvolvimento econômico e não vai ter no curto prazo tecnologia com hidrogênio ou elétrica para aviões. Existe o interesse em e-vtol, mas ainda é pequeno”, diz Medeiros. E-vtol é a sigla em inglês para veículo elétrico de decolagem e aterrissagem vertical, aeronaves que já começam a ser testadas. Uma das empresas que investe no setor é a brasileira Embraer.
Uma das maiores fabricantes mundiais de aviões, a Boeing também tem investido em novas tecnologias, seja no uso de novos materiais, na aerodinâmica ou operação dos motores. Diretor da Boeing para Políticas Públicas e Parcerias em Sustentabilidade para América Latina e Caribe, Otávio Cavalett afirma que, no momento, os principais desafios do setor são “materializar essas iniciativas de descarbonização que já estão disponíveis”, como a renovação de frota e o emprego de SAF.
Aviões mais eficientes
“Os números mostram que os novos aviões entregues atualmente podem reduzir alguma coisa em torno de 20% e até 30% das emissões em relação aos modelos mais antigos que eles estão substituindo. Então, sim, acelerar a renovação de frota é uma medida muito importante a ser perseguida na jornada de descarbonização do setor”, diz. No entanto, afirma Cavalett, a descarbonização só será alcançada se todas as “partes interessadas” se unirem em torno deste objetivo: academia, governos, empresas de energia e companhias aéreas, que, por sua vez, ainda se recuperam dos efeitos da pandemia que paralisou o setor em 2020.
A Latam utiliza em sua frota aviões da Airbus e da Boeing. Os modelos da Airbus, como o A319, A320 e A321 são dedicados a voos domésticos ou distâncias dentro da América do Sul. Já os maiores modelos da Boeing, como o 767, o 777 e o 787 são empregados em rotas de longa distância. Sato diz que a empresa investe constantemente em renovação de frota, que os modelos mais eficientes consomem até 25% menos combustível e que em 2023 15 aviões novos chegaram para a operação brasileira: sete A321neo e oito A320neo (o “neo” da sigla se refere a uma atualização da família de jatos da Airbus lançada em 2014 e significa “nova opção de motores” na sigla em inglês).
“As aeronaves da frota, por serem as mais modernas do mercado, já são preparadas para operar com SAF. Bastando o combustível sustentável estar disponível para o setor aéreo, de forma acessível. Além disso, trabalhamos com o modelo drop-in, portanto, não precisamos fazer mudanças estruturais nas nossas aeronaves para voar com SAF”, afirmou Sato.
A empresa já tem empregado SAF em seus voos. “Em 2022, anunciamos o compromisso de buscar a incorporação de 5% de SAF em nossas operações até 2030, sendo obrigatória a sua produção na América do Sul. Em março de 2023, realizamos nosso primeiro voo internacional de cargas com o SAF conectando Espanha e a América do Norte. Em julho passado, recebemos um A320neo da Airbus que utilizou 30% de SAF no voo de entrega (entre Toulouse e Fortaleza) e, em outubro, um A321neo abastecido com 49% desse combustível (em um voo entre Hamburgo e Fortaleza). São sinalizações que temos dado ao mercado de que existe demanda e interesse em obter SAF de qualidade, em alta escala e dentro dos critérios técnicos exigidos”, diz. Toulouse fica na França e Hamburgo, na Alemanha.
Mas a questão do custo, afirma Sato, é fundamental para a sustentabilidade do setor. “Um dos principais desafios é para que o crescimento sustentável da aviação não aumente os custos a ponto de impedir o acesso das pessoas ao transporte aéreo ou limitar a conectividade em um país como o Brasil de dimensões continentais”, afirma a executiva. Ela defende a criação de um marco regulatório para descarbonizar o setor, segurança jurídica para investimentos e incentivos e tributação “adequados”.
O potencial do Brasil
Diretor de Tecnologia e Inovação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Jefferson Gomes avalia que o SAF é um dos caminhos para a descarbonização da aviação e que há lugares que têm, sim, um enorme potencial de produção e exportação desse combustível.
“O sertão nordestino, a gente usar sisal como provedor de SAF? É, é uma aposta. Lá, a pobreza é enorme, a vulnerabilidade social é enorme, o desempenho econômico é ruim e o recurso é abundante. A topografia é boa e a incidência solar é grande. Você pode fazer SAF como você pode fazer combustível para fazer hidrogênio. Você pode usar a mesma lógica para fertilizante nitrogenado. Se o mercado estiver ruim para SAF, você deriva para outro a partir daquilo”, exemplifica sofre o potencial desta nova fronteira em favor da sustentabilidade.
No entanto, diz Gomes, há locais que não poderão dispor de matéria-prima em abundância ou mesmo poderão não ter pronta disponibilidade do produto. “Acho que o SAF é uma fantástica solução, mas que ele será sempre percentual. Porque é muito barato fazer querosene comum”, avalia.
Sato, por sua vez, cita um estudo que afirma que o Brasil tem capacidade de produzir SAF suficiente para a demanda local e ser ainda um importante “player no mercado de exportação”.