São Paulo – Ela colocou os pés no Brasil quando o seu país, o Líbano, fervilhava em guerra civil, na década de 1980. Veio ainda bem jovem, para visitar parentes, e poderia ter tido uma história parecida com a de muitas das mulheres árabes imigrantes, que aqui desembarcaram, se casaram, construíram sua família e ponto. Mas Safa Jubran tinha vindo para mais. Chegou com a vontade de estudar e a curiosidade sobre as letras metida na alma e, em cerca de três anos, mesmo sem dominar completamente a língua portuguesa, era estudante de Letras de uma das melhores universidades do Brasil, a Universidade de São Paulo (USP).
Embrenhada no mundo acadêmico, aprendendo e pesquisando linguística, fonética, fonologia e até história da ciência, ela construiu, ao longo destes anos, uma carreira que a transformou em ponte entre autores do mundo árabe e leitores do Brasil. E também em ponte para a comunicação falada entre árabes e brasileiros. Safa já traduziu mais de dez livros do árabe para o português e ensina os segredos do idioma e da literatura árabe para alunos da graduação e da pós-graduação na USP. A tradução lhe dá os louros, mas são as aulas que fazem brilhar seus olhos.
Ela conta à reportagem da ANBA, em seu apartamento na zona Oeste da capital paulista, sobre alunos que foram e voltaram de viagens ao mundo árabe, sobre quanto aprenderam, sobre quanto melhoram a cada dia e sobre quanto gosta de ensinar, até mesmo aos mais crus no idioma. "Eu faço questão de dar aulas para o primeiro ano", diz, referindo-se às turmas iniciantes no estudo do Árabe na USP. Na instituição de ensino, foi Safa quem ajudou a fazer reformulações na Pós-Graduação de Língua, Literatura e Cultura Árabe e a unificar a área com o programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica.
O caminho para chegar até ali foi trilhado assim que ela se formou em Letras e conseguiu, por meio de concurso, uma vaga para professora assistente de árabe na USP. Dali em diante Safa não largou os livros e a pesquisa. Fez mestrado em Linguística para analisar o contraste do sistema fonológico do árabe e do português no ensino do árabe, doutorado para aprofundar o estudo nesta área e pós-doutorado, no qual traduziu e analisou um manuscrito do século 11, em árabe, sobre história da ciência. Ainda em 2010, se tornou livre-docente em língua árabe na USP.
A tradução e a análise de manuscritos antigos, aliás, foi um dos primeiros trabalhos de Safa, assim que começou a lecionar na USP. "Iniciei pelo mais difícil", diz. Ela trabalhou, com a professora Ana Maria Alfonso-Goldfarb, por dez anos em um manuscrito do século nove sobre alquimia, que acabou virando publicação. Também traduziu uma gramática árabe do inglês para o português, escreveu um livro sobre os contrastes fonológicos e traduziu e estudou um manuscrito do século 11 sobre história da ciência, trabalho que também virou livro.
E deu tempo, no meio disso tudo, de traduzir literatura árabe? Deu. E o segredo dessa capacidade de abarcar quase tudo fica claro para quem conversa alguns minutos com Safa e percebe seu jeito prático, quase elétrico, com energia para muito. Por ter esse perfil, ela resolveu encarar a missão de passar para o árabe o livro de um dos mais famosos autores brasileiros da atualidade: "Dois Irmãos", do escritor com ascendência libanesa, Milton Hatoum. "Agora penso: como foi que eu aceitei?!" afirma, rindo, com seu leve sotaque árabe.
Safa afirma que o livro de Hatoum foi um dos trabalhos com os quais mais sofreu. Foi a única tradução literária, aliás, que ela fez do português para o árabe. O grande desafio, explica a linguista, foi transmitir ao leitor todas aquelas informações sobre o ambiente da Amazônia, onde se passa a história. A tradução levou alguns meses e ocupou muitas horas do pensamento de Safa, que matutava sobre como fazer os árabes entenderem o que era esse ou aquele elemento. Para muitas palavras, a solução foi um glossário, e várias notas.
Safa também fez a revisão técnica da tradução do árabe para o português de poemas de um dos mais famosos poetas árabes, o sírio Adonis. O responsável pela tradução foi o seu colega de USP, o docente e poeta Michel Sleiman, que selecionou os poemas e publicou um livro com eles este ano pela Companhia das Letras. Sobre todos os títulos e trabalhos que leva no currículo, ela diz: "tentei fazer da melhor forma possível, não há nada do que eu me envergonhe".
Atualmente, Safa tem outros projetos de tradução no forno e comemora o crescente interesse pela literatura árabe no Brasil, além da procura maior pelo curso de Árabe na USP. Afirma que hoje os próprios alunos chegam à universidade mais preparados, com maiores informações sobre o mundo árabe. Grande parte desse interesse, diz ela, aconteceu depois dos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Além do trabalho acadêmico e de tradutora, Safa faz parte do Instituto da Cultura Árabe (Icarabe), organismo formado por intelectuais que promove atividades culturais sobre o mundo árabe.
A Safa do Líbano e de casa
Casada há 30 anos com o homem que conheceu e pelo qual se apaixonou logo que chegou ao Brasil, ela não pensa em voltar a morar no Líbano. Aliás, nunca mais foi para lá desde que se mudou para São Paulo. Marjayoun, sua cidadezinha, no sul libanês, na divisa com Israel, ficou só nas lembranças. "O meu Líbano é aquele que está na parede da minha memória", diz ela, inconformada com o fato de o país, até hoje, não ter entrado em equilíbrio político e de facções depois do aprendizado de anos e anos de guerra civil.
Do seu país ela guarda as lembranças boas, da vida familiar e da cidade tranquila, mas também imagens tristes, como da morte do seu pai, ainda na sua infância, e da guerra, na sua adolescência. "Não tive uma adolescência muito comum", conta, sobre as privações que sofreu em função da guerra. "A gente acordava de manhã e agradecia a Deus por estar vivo, pensava só em como sobreviver naquele dia", relata. Mesmo assim, Safa se formou no ensino médio, já que estudou em uma boa escola, o que ajudou a abrir seus caminhos mais tarde.
Talvez Safa vá visitar seu país um dia, não sabe. As circunstâncias não a levaram lá até agora, conta. Ela não é daquelas imigrantes que só convivem com a colônia árabe, só come os pratos tradicionais da região ou sabe dançar muito bem a dança do ventre. Cozinha uma comidinha árabe de vez em quando, fala uma ou outra palavra em árabe com seu marido, que é descendente, mas convive muito com brasileiros e sua cultura. O marido é professor de biologia e pesquisador de Música Popular Brasileira. E Safa, apesar de senhora das letras árabes, é praticamente uma brasileira.