São Paulo – No dia 1º de agosto, a HBO, rede de televisão por assinatura, vai estrear a série documental “Babel SP”, que retrata o convívio entre refugiados árabes e brasileiros sem-teto, em um edifício ocupado no bairro da Liberdade, batizado de Ocupação Leila Khaled. O conteúdo que será exibido no canal Max, pertencente à HBO, mostra a convivência de 250 pessoas que se uniram para partilhar o espaço, na luta por moradia em meio à especulação imobiliária da capital paulista.
O diretor da série, André Amparo, responsável por filmes como “20 anos de Grupo Galpão”, e produtores como Samantha Capdeville, que trabalhou no longa “O Palhaço”, de Selton Mello, se uniram para a produção documental. A personagem principal de ‘Babel SP’ não é uma pessoa em si, mas sim a improvável relação que se criou entre os brasileiros e os árabes ali, no centro de São Paulo. “O nosso foco é a convivência entre eles. As possibilidades de uma convivência solidária entre esses povos com essas dificuldades. Com tantas diferenças culturais, uma senhora de 80 anos que está ali no mesmo ambiente de uma travesti que é prostituta. É um abismo cultural, religioso. Inclusive os refugiados eram muito mais informados dos que os próprios brasileiros. Quase todos tinham curso superior”, relatou Capdeville.
A produção originalmente se limitaria a história de refugiados da Síria, mas o tema se ampliou quando André Amparo descobriu a Ocupação dos brasileiros sem-teto do Movimento Terra Livre, que acolheu também os refugiados. “Enviamos o projeto e vários canais se interessaram. Originalmente era um documentário de longa-metragem”, explicou Amparo, que também optou por migrar o formato para o de série, dividida em sete episódios de uma hora cada um.
As gravações começaram em março de 2017. Mas antes, a equipe mergulhou em um longo processo de aproximação. “Comecei a frequentar muito lá [a Ocupação], um ano indo e voltando”, explicou André, que é mineiro. “Esse processo é muito político. Frequentamos para nos tornar próximos. Para ganhar a confiança deles, principalmente dos árabes”, completou Capdeville.
Para chegar aos primeiros encontros, a equipe do “Babel SP” teve o apoio do ativista Hasan Zarif, brasileiro de origem palestina e dono do restaurante Al Janiah. Ele foi a porta de entrada dos criadores, que antes de irem ao prédio conheceram moradores que trabalham no restaurante. Zarif é filho de refugiados palestinos e fala árabe. “Ele encontrou um senhor árabe na rua e descobriu que era refugiado e que estava morando em uma pensão no [bairro do] Brás, com vários outros. Estavam sendo explorados. Pagando uma fortuna para morar em espaços minúsculos, eram aliciados no aeroporto quando chegavam”, relatou Capdeville.
Assim, Zarif passou a incluir os refugiados em atividades do Movimento Terra Livre. “A questão da especulação imobiliária foi o que mais nos preocupou e conversei com eles para incluirmos famílias de árabes já nesta ocupação”, afirmou Zarif. “Eles têm, por questão política, resistência de morar ali. Não entendiam como funcionava e como era possível morar em um lugar que não era deles e nem de ninguém. Pensavam: quem são essas pessoas que moram em um lugar desse tipo? Para um árabe, não existe família morando na rua. Eles jamais deixariam um membro da família morar na rua”, acrescentou Capdeville.
As famílias árabes receberam moradia dos andares 07 ao 10 e, na primeira assembleia de moradores, ficou decidido o nome: Ocupação Leila Khaled, homenageando uma militante que marcou história na luta palestina nos anos 1970. Ao longo de 2016, a equipe acompanhou o dia a dia na ocupação, mas só em março de 2017 iniciou as primeiras filmagens. Com duas câmeras, os profissionais se posicionaram em espaços de 10 a 30 metros quadrados. “Hoje, quando lembro da gente ali com aquelas câmeras, somos muito loucos de fazer aquilo. Isso só aconteceu por causa desse longo processo de um ano de contato até a gente entrar [com as câmeras]”, explicou a produtora.
24h por dia no Ramadã
Entre as passagens que a série retrata está a convivência entre os moradores do prédio no mês sagrado para os muçulmanos, o Ramadã, quando os fiéis jejuam do nascer ao por do sol. “Filmar no Ramadã foi superbacana porque a gente teve relação estreita com a Mesquita Brasil [em São Paulo], que apoiou. Eles entenderam a proposta, que estávamos fazendo da maneira mais sincera. Deixei muito claro logo de início que nossa proposta era contar a história deles, do recomeço. De como foi a chegada ao Brasil, ter que trabalhar com algo que nem era o que faziam [na terra natal]. O dia a dia dessa nova realidade. Não é uma série só sobre refugiados. É sobre esse encontro”, afirmou André Amparo.
O desafio de gravar no período implicou em esforço da equipe durante todo dia, para acompanhar os brasileiros e, no período noturno, quando os árabes muçulmanos quebravam o jejum. “Para nós, é algo racional. Eles (moradores da ocupação) agem muito pelo emocional. Estão fazendo o que fazem todo dia. Os árabes funcionavam só à noite, e os brasileiros só de dia. Foi uma oportunidade muito grande. Os árabes faziam verdadeiros banquetes e se juntavam em uma mesma casa”, apontou Capdeville.
Refugiados na própria pátria
No auge das gravações, os realizadores contam que o número de refugiados chegou a 57, em sua maioria vindos da Síria. Mais do que isso, boa parte era de palestinos nascidos na Síria. “Os brasileiros são refugiados da própria pátria. Os árabes na ocupação são refugiados duas vezes. Palestinos que foram para a Síria e depois, novamente,l são expulsos. Descobrimos lá que alguns deles tinham morado no mesmo campo de refugiado na Síria. Eles refizeram a vida lá, e tinham anos de amizade. Pessoas que tinham conquistado vida estável e foram se encontram na ocupação [no Brasil]”, afirmou Samantha Capdeville. Ao longo dos episódios, é possível acompanhar a vida e o envolvimento entre os moradores, que muitas vezes trabalham juntos em restaurantes ou atividades como carreto de móveis.
No local que recebeu o nome de uma árabe, mulheres são a maioria. “O que vimos é que quando os homens árabes não têm condição de sair com a família inteira da [guerra], mandam primeiro as mulheres”, disse Capdeville. Elas, portanto, têm papel decisivo na ocupação. “Existe um protagonismo feminino. Na própria realidade delas [brasileiras] muitas têm maridos presos. E acho que nós mulheres temos um desespero maior de ir para algum lugar. É muito mais difícil para mulher viver na rua. E a questão de segurança também é uma coisa delas, de estar presente nas ocupações, de lutar mais por esse lugar, que é muito único”, relatou a produtora.
Se o nome Babel lembra a história bíblica de como as diversas línguas criam barreiras entre os povos, por vezes são os personagens dela que desfazem essa ideia. “Conversamos, por exemplo, com um baiano e um árabe que se tornaram amigos. Era muito engraçado, porque o árabe conseguia entender o que o baiano falava, mas só o que ele falava, ninguém mais. Eles brincavam que criaram uma língua própria”, relembrou Capdeville.
Serviço
Estreia da série ‘Babel SP’
1º de agosto, às 23 horas
Canal MAX, da HBO