Cairo – Menos de um mês antes da 2ª Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), que vai ocorrer no dia 01 de abril em Doha, no Catar, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, disse, em entrevista exclusiva à ANBA, que as duas regiões podem encontrar mecanismos conjuntos para enfrentar a crise financeira internacional, como a criação de um Fundo Árabe-Sul-Americano para o Investimento.
Ele declarou ontem (03), no Cairo, que após a 1ª Cúpula, realizada em maio de 2005, em Brasília, a aproximação entre a América do Sul e o mundo árabe vem evoluindo de maneira bastante satisfatória e, ao poucos, está se transformando num projeto comum das duas regiões. Amorim ressaltou que comércio birregional aumentou de maneira considerável e a cooperação em diferentes setores está se intensificando.
O ministro foi a única autoridade de primeiro escalão da América Latina a participar da Conferência de Doadores em Apoio à Economia Palestina para a Reconstrução de Gaza, que ocorreu na segunda-feira em Sharm El Sheikh, no Egito. Ele reiterou o interesse da diplomacia brasileira em envolver-se mais na questão do Oriente Médio.
Em sua passagem pelo Egito, Amorim conversou com o ministro das finanças, Youssef Boutros Ghali, que é presidente do Comitê Monetário e Financeiro Internacional, órgão do Fundo Monetário Internacional (FMI), sobre a questão da reforma das instituições financeiras internacionais.
O chanceler também entregou uma carta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao presidente egípcio, Hosni Mubarak, reiterando convite para visitar o Brasil. Hoje ele participa de reunião ministerial preparatória para a 2ª Cúpula. Segue a entrevista:
ANBA – O senhor já esteve com o presidente Mubarak, o chanceler Ahmed Aboul Gheit e o ministro das Finanças. Como foram esses encontros?
Celso Amorim – Estive com o presidente Mubarak durante a conferência de Sharm El Sheikh. Nesta ocasião o felicitei pelo evento, pois já havia conversado mais em profundidade com ele há um mês e meio. Na verdade o objetivo de minha conversa com o presidente e o ministro Aboul Gheit foi reiterar o convite para visitar o Brasil. Achei que o presidente se entusiasmou com o convite, senti isso pela maneira como ele especulou sobre possíveis épocas para a sua visita, mostrou que há um interesse real de sua parte.
Em meu encontro com o ministro Youssef Boutros Ghali falamos, sobretudo, da necessidade de se fazer reformas nos organismos financeiros internacionais. Como todos sabem, o Brasil está reivindicando uma mudança no sistema de voto dentro de organismos como o FMI, para que este possa refletir melhor a realidade que reina no mundo de hoje. Acho que, no mundo de hoje, a criação do G-20 que, na verdade já tomou o lugar do G8, é um reconhecimento de que, sem países como o Brasil, a China, a Índia e outros, não se consegue resolver os grandes problemas financeiros do mundo. Por causa disso pensamos que esta realidade deve também ser refletida no sistema de voto. Não é possível que um pequeno país europeu, cuja política monetária não é nem mesmo ditada pelo seu Banco Central, tenha um voto maior do que o da China, por exemplo.
Já se passaram quase quatro anos desde a primeira Cúpula ASPA e estamos às vésperas da segunda. Como o senhor avalia a evolução, a aproximação das duas regiões? O senhor acredita que os objetivos iniciais foram realizados, ou que algo ainda está por ser feito?
Acredito termos alcançado os objetivos iniciais. Obviamente isso não é um processo que se completa do dia para a noite. Temos que admitir que, em geral, tanto empresários quanto agentes culturais estão sempre mais acostumados a trilhar as rotas que já são conhecidas. E sempre que você procura abrir novas rotas encontra as dificuldades criadas, às vezes, pela própria inércia. Mas eu acho que nós conseguimos, por exemplo, no caso do Brasil, um aumento do comércio com os países árabes bastante notável. Temos hoje com o mundo árabe um comércio de US$ 20 bilhões, e no ano da primeira Cúpula ele não passava de US$ 8 bilhões. Então há um crescimento muito importante. Estava observando o comércio com um país muito pequeno, mas rico, que é o Catar, e notei que as exportações brasileiras para este país eram de US$ 23 milhões naquela época, e agora são de US$ 300 milhões. Isso mostra um grande aumento no conhecimento e interesse pelo Brasil por parte destes países.
Houve também um aumento das atividades na área de investimentos entre os dois blocos?
É claro, os investimentos estão avançando também de maneira visível. Sei que houve, por exemplo, um investimento egípcio na área eletrônica em Minas Gerais. O Brasil deve abrir dentro de pouco tempo, aqui no Egito, uma fábrica de ônibus da Marcopolo, e percebo que têm ocorrido fatos semelhantes na Líbia, na Argélia, na Arábia Saudita, no próprio Catar. Nós abrimos duas ou três embaixadas a mais no mundo árabe e alguns países árabes fizeram o mesmo no Brasil. Foi também criada uma linha aérea direta entre o Brasil e os Emirados, isso aumenta o fluxo de turismo e por isso há um crescimento do contato humano.
Na área cultural da ASPA temos a biblioteca de Argel e um instituto cultural em Tanger. No Brasil os institutos de estudos árabes têm aumentado. O que já existia em São Paulo está muito mais ativo e no Rio de Janeiro foi criado um novo.
Qual o impacto que o trabalho de seguimento da ASPA e as reuniões ministeriais que fazem parte dele estão tendo sobre a aproximação entre os dois blocos?
As reuniões ministeriais estão certamente tendo um bom efeito. Por exemplo, houve há pouco tempo, em Riad, uma reunião muito importante na área de irrigação. Reuniões na área de política social estão também ocorrendo e tendo boas repercussões sobre a cooperação entre os dois grupos. Mas devo dizer que muitas vezes estes encontros vão além dos programas da ASPA e deles vão nascendo outros programas bilaterais ou trilaterais. Acho que certamente esta aproximação tem sido um grande êxito.
Num momento em que o mundo está enfrentando uma importante crise financeira, a aproximação entre a América do Sul e o mundo árabe prevê algum mecanismo conjunto para lidar com essa questão?
Existem algumas experiências feitas dentro do Mercosul que poderiam interessar ao mundo árabe. No ano passado criamos algo muito útil para enfrentar a crise, que foi um mecanismo de pagamento em moeda local entre o Brasil e a Argentina, para fazer comércio entre esses dois países não é necessário utilizar dólares ou euros. Pagamos em reais ou em pesos. Isso, a meu ver, é algo que pode ser estendido a um grupo maior de países em desenvolvimento.
Poderíamos também tentar criar um fundo de desenvolvimento para projetos comuns. São idéias que cedo ou tarde poderão ser discutidas no âmbito do grupo da Cúpula ASPA. Nesse sentido, penso que a criação de um Fundo Árabe-Sul-Americano para o Investimento é algo que deveria ser estudado, porque esses países têm importantes interesses comuns em vários temas, como a segurança energética, a mudança de clima, a alimentação. Em alguns casos são países complementares, em outros podem haver soluções diferentes.
Tradicionalmente tanto o Brasil e a América do Sul quanto o mundo árabe estiveram voltados para os países do Norte. Que fez com que esses dois grupos se voltassem mais um para o outro?
Hoje em dia, quando observo a crise financeira mundial e vejo porque o Brasil foi relativamente menos afetado, percebo que há para isso basicamente duas razoes. Uma delas foi o próprio crescimento do nosso mercado interno, em função de nossos programas sociais, que foram muito bem sucedidos e criaram uma categoria de consumidores que não existia antes. Outra razão foi a diversificação do nosso comércio exterior. Felizmente não dependemos mais de um único mercado. Há cinco ou seis anos, os Estados Unidos, Europa e Japão representavam mais de 60% de nosso comércio externo. Hoje em dia, ao contrário, temos um comércio muito importante com países em desenvolvimento. Nossa aproximação com o mundo árabe entra um pouco nessa lógica. Mesmo que nosso interesse em nos aproximarmos do mundo árabe vá muito além do âmbito puramente comercial.
Há visivelmente um grande interesse diplomático brasileiro pela região. O senhor esteve nesta área durante o mês de janeiro e foi ontem (segunda-feira) o único representante ministerial da América Latina na reunião de doadores de Gaza.
Sim, certamente o Brasil está hoje mais envolvido nas questões políticas do Oriente Médio. Creio que a possibilidade do Brasil ter um papel no dialogo político é algo compreendido por todos. Penso que o Brasil não pode se ausentar do mundo. Os acontecimentos importantes mundiais, especialmente os desta região, também afetam o Brasil, às vezes através do preço do petróleo, outras através da crise financeira que está certamente ligada a situações políticas. Penso então que o Brasil tem que estar presente no Mundo. Quando estive com o presidente Mubarak, disse que a questão do Oriente Médio necessitava de ar fresco, de novas idéias. Ele concordou e repetiu as minhas palavras.
O presidente Lula havia mesmo apresentado um plano…
A idéia do presidente Lula, que é baseada na experiência de Anápolis (conferência de paz realizada nos Estados Unidos), era relançar uma conferência que pudesse produzir não o “processo de paz”, mas sim a própria paz. Pois penso que, não somente os povos desta região, mas a humanidade inteira é refém desta situação. Para ligar a idéia do presidente Lula com a realidade dos acontecimentos, ontem (segunda-feira) foi confirmada a intenção dos russos de se fazer uma Anápolis 2 em Moscou. Essa idéia coincide exatamente com o que havia pensado o presidente Lula.