Damasco – O Ministério do Turismo da Síria convidou jornalistas de diferentes nacionalidades para visitar a 61ª Feira Internacional de Damasco e sítios históricos e religiosos danificados durante a guerra no país, iniciada em 2011. Durante uma semana, entre o final de agosto e início de setembro, o grupo formado por profissionais da Argentina, Cuba, Iraque, Omã, República Tcheca, além da ANBA, do Brasil, percorreu mais de 1,2 mil quilômetros da capital, no Sudoeste do país, ao interior e ao litoral, na região Noroeste. A agência publica a partir desta terça-feira (10) uma série de reportagens sobre esta viagem.
Para chegar a Damasco, foi necessário desembarcar em Beirute, no Líbano, cruzar a fronteira e seguir para a capital síria de carro, pois poucas companhias aéreas servem o Aeroporto Internacional de Damasco atualmente. A intensa presença militar nas estradas e nas cidades é uma lembrança constante de que ainda há conflitos no país. Na época da visita, concentrados na região de Idlib, no Noroeste.
Nas áreas centrais de Damasco, as marcas da guerra não são visíveis à primeira vista, mas para onde quer que se olhe há alguém de farda. Cartazes com a foto do presidente Bashar Al Assad são onipresentes, assim como as cores da bandeira síria. Os rostos de aliados do governo sírio, como o presidente russo, Vladmir Putin, e o líder do movimento libanês Hizbollah, Hassan Nasrallah, estão também por todos os lados, até em suvenires.
A capital continua movimentada, com tráfego pesado, e muita gente circulando por áreas de comércio popular, como o Souq Al-Hamidiyah, o mais famoso centro comercial da cidade. A reportagem havia visitado Damasco pela última vez no final de 2010, poucos meses antes de a guerra começar.
Patrimônio
Damasco é uma das mais antigas cidades do mundo continuamente habitadas, e seu centro histórico reúne vestígios de diversas civilizações, como as ruínas do Templo de Júpiter, do Império Romano; a grande Mesquita Omíada (foto do alto), construída no século 08, durante o califado de mesmo nome, e que guarda uma relíquia reverenciada por muçulmanos e cristãos: um crânio atribuído a São João Batista.
Numa área adjacente ao pátio da mesquita, um santuário marca o local original de sepultamento da cabeça de Hussein, filho de Ali e Fátima, e neto do profeta Maomé, cuja morte na batalha de Kerbala, no atual Iraque, no século 07, sacramentou a cisma entre muçulmanos xiitas e sunitas. É um local de peregrinação xiita dentro de uma mesquita sunita.
Numa das laterais da mesquita está o túmulo de Saladino, o herói muçulmano que venceu os cruzados no século 12, fundou a dinastia aiúbida e estabeleceu um sultanato que incluía o Egito, a Síria, a Palestina, parte do atual Iraque, a região do Hejaz, na atual Arábia Saudita, e o Iêmen. Mais recentemente, lá foi enterrado o líder religioso sunita Mohammad Said Ramadan Al-Buti, assassinado em 2013, em Damasco, durante a guerra na Síria.
A Cidade Antiga de Damasco está repleta de palácios, hospedarias, casas de banhos e mercados, parcialmente cercados por muralhas medievais. Uma ala remanescente de um palácio da dinastia omíada hoje funciona como restaurante e palco de apresentações de danças sufistas. O sufismo é uma corrente mística do Islã e seus representantes mais conhecidos são os dervixes rodopiantes, que por meio da combinação de música, dança e orações atingem um estado de êxtase religioso. Antes da guerra, pessoas de várias partes do mundo iam ao local para apresentar sua arte, mas agora não mais, segundo frequentadores.
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As evidências da Antiguidade e da Idade Média convivem com monumentos do período otomano, sendo que alguns ainda mantém suas funções originais, como casas de banhos e os souqs que rodeiam a Mesquita Omíada.
O centro histórico de Damasco é considerado Patrimônio da Humanidade pela União das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e desde 2013 está na lista de Patrimônio Mundial em Perigo da instituição, por causa da guerra.
O turismo é uma atividade importantíssima para a economia síria. Segundo o ministro do Turismo, Rami Radwan Martini, o país havia recebido 9 milhões de visitantes em 2010, ano anterior ao início dos conflitos. Durante a guerra, de acordo com ele, 258 mil empregos direta ou indiretamente ligados ao setor foram perdidos.
Dois dos guias que acompanharam os jornalistas durante viagem relataram que passaram os últimos oito anos sem emprego fixo, vivendo de bicos, da ajuda de parentes e amigos, inclusive de conhecidos do Brasil, e da venda de bens pessoais.
Assombro
Moradores de Damasco contaram que viveram períodos de medo e privações. Durante a guerra, grupos armados se entrincheiraram em subúrbios da capital e de lá disparavam morteiros em direção ao centro da cidade. Um projétil caiu em frente à embaixada do Brasil no início do ano passado, antes de o exército sírio anunciar a retomada do controle da periferia em maio de 2018, com a tomada de um último bastião do autoproclamado Estado Islâmico na região.
A brasileira Marcela Jacques mora em Damasco com o marido sírio e os dois filhos, uma menina de 10 anos e um garoto de um ano e meio. “Quando começaram mesmo os problemas, em 2012, com bombardeios na cidade, eu fique assustada”, disse. Ela decidiu voltar ao Brasil com a filha – o menino ainda não havia nascido – e permaneceu no País por cerca de um ano, até o final de 2013, enquanto o marido ficou na Síria, onde trabalha em uma embaixada. “Foi muito complicado, havia tanques nas ruas, helicópteros e aviões militares sobrevoando”, contou. Jacques afirmou que por duas vezes projéteis caíram nas proximidades de onde estava, a primeira vez num prédio público e a segunda nas cercanias do Souq Al-Hamidiyah.
Os combates nos arredores de Damasco foram intensos e os moradores testemunharam assustados os disparos nos céus da cidade à noite. A falta de eletricidade era constante, assim como o racionamento de combustíveis, inclusive para calefação, e a libra síria sofreu forte desvalorização.
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Nos arredores de Damasco, o resultado é espantoso. Distritos inteiros como Zamalka, Harasta e Douma estão completamente em ruínas, são verdadeiras cidades fantasma.
Rodovias agora abertas ao tráfego foram fechadas durante os conflitos. Por uma delas, a reportagem seguiu para Maalula e Sednaya, santuários cristãos que serão tema de reportagem nesta quarta-feira (11).
*A estadia da reportagem da ANBA ocorreu a convite do Ministério do Turismo da Síria