São Paulo – Filha de imigrantes libaneses, Soraya Smaili é a primeira reitora mulher, não médica e também a mais jovem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em seu último ano na posição mais alta da universidade, ela coleciona diversos feitos na área de pesquisa, no combate à covid-19, está à frente dos testes da vacina contra o vírus da Universidade de Oxford no Brasil e atua pela democratização e transparência da universidade pública. Além disso, é fundadora do Instituto da Cultura Árabe (Icarabe), que há 16 anos promove a cultura árabe e muçulmana no Brasil com mostras de cinema, exposições e palestras, entre outras atividades.
A reitora está na posição há mais de sete anos, sua gestão termina em abril de 2021. É graduada em Farmácia e tem mestrado, doutorado e pós-doutorado na área de Farmacologia. É professora da Escola Paulista de Medicina e foi a primeira reitora com menos de 50 anos na época de sua primeira eleição.
“Hoje eu vejo isso, a gente imprimiu um ritmo maior, juntou muitas coisas, muita experiência, alinhado com o nosso tempo”, afirma. Soraya se viu atuando em uma dinâmica muito menos formal que seus antecessores, próxima do dia a dia da comunidade, em um diálogo permanente.
Sua atuação na reitoria imprimiu transparência no âmbito do orçamento e equidade de gênero nos cargos mais altos da universidade. A Unifesp conta com 54 cursos de graduação, 74 cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado, além de cerca de oito mil estudantes em mais de 100 programas de especialização. No total, são cerca de 23 mil estudantes entre todas as modalidades acadêmicas.
“Nosso projeto era ter uma universidade mais democrática, que todas as instâncias tivessem aprimoramentos, além de termos incluído entre as pró-reitorias técnicos de todas as áreas, também trouxemos muitas mulheres, porque a gestão que me antecedeu tinha apenas uma mulher na alta gestão. Hoje temos 60% a 70% de mulheres na alta gestão. Isso foi muito importante, hoje temos pró-reitoras, diretoras acadêmicas e técnicas mulheres”, contou.
Diante da pandemia de covid-19, todas as aulas da Unifesp estão sendo ministradas à distância, mas isso não é algo que será perpetuado. “Entendemos que o ambiente acadêmico presencial é muito importante para a formação”, disse. Segundo ela, é difícil fazer ter as mesmas experiências de troca que se dão na sala de aula no meio digital. Soraya trabalha pela democratização e maior participação dos estudantes, com audiências públicas e transparência no orçamento, inclusive com audiências abertas onde os gastos podem ser questionados. “É dinheiro público”, disse.
Outra preocupação de Soraya na reitoria da universidade é a qualidade do ensino em pesquisa e extensão. “Trabalhamos muito fortemente para melhorar o ensino, atingimos vários rankings e estamos sempre entre as primeiras universidades do País. Em pesquisa, nós estamos, dependendo do parâmetro medido, em primeiro lugar, porque o número de publicações por docente é altíssimo, até superamos a USP (Universidade de São Paulo) em alguns casos, melhoramos muito na pesquisa”, afirmou.
A atuação da universidade perante a sociedade também foi ação de Soraya. “Temos muitos projetos sociais, projetos de educação continuada, atendimento a pessoas trans, a refugiados. Nossa universidade também se transformou para dar apoio aos profissionais de saúde, que tiveram uma dificuldade enorme no início da pandemia”, disse.
Pandemia e pesquisa
Quando a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil, Soraya criou um comitê permanente de combate à covid-19 na universidade, restabelecendo e reorganizando estruturas para combater o novo vírus. “Com base nos estudos dos infectologistas, nos preparamos, compramos mais leitos e respiradores, fizemos campanhas de doação e atuamos para conseguir os recursos e toda a comunidade participou. Reorganizamos o hospital (Hospital São Paulo, da Unifesp) para atender a população”, disse. O Hospital São Paulo é público, oferece atendimento gratuito e pertence ao Sistema Único de Saúde (SUS).
A Unifesp abriu editais específicos para pesquisadores estudando a covid-19. Segundo Soraya, são projetos que estudam fármacos, o tratamento da doença para casos de internação, além dos testes da vacina da Universidade de Oxford, que no Brasil estão sendo conduzidos pela Unifesp. São pelo menos 15 pesquisas clínicas envolvendo novos fármacos sendo concluídas em pacientes internados na UTI. Soraya conta que 80% dos casos de covid-19 são assintomáticos e dos 20% sintomáticos, pelo menos 10% desenvolve a forma grave da doença.
Por isso ela acredita que a vacina não basta. “Tem que ter um antiviral, um anti-inflamatório. A heparina foi o primeiro fármaco que vimos resultados reduzindo a mortalidade, depois o corticoide, vimos que reduz o tempo que o paciente fica entubado no respirador. Precisamos de fármacos que sejam bons e atuem para reverter esses quadros”, disse. Outro estudo desenvolvido pela universidade nessa frente é a pesquisa do diagnóstico, desenvolvendo novas tecnologias para realizar o teste de covid-19 pela saliva. “O teste PCR, pela garganta, é muito desagradável”, explicou.
Como pesquisadora, Soraya ainda está envolvida em um projeto que estuda o estrógeno como protetor contra a infecção pelo coronavírus em cultura de células do pulmão e do intestino. “Estudamos a capacidade do estrógeno e outros fármacos para inibir a covid-19. Existem dados concretos que as mulheres são menos vulneráveis à doença”.
Vacina
A Unifesp coordena os testes da vacina da Universidade de Oxford no Brasil. São quase dez mil voluntários recebendo a vacina ou placebo desde o mês de junho. “A vacina de Oxford está indo bem e trouxe muitos benefícios para a Unifesp porque a gente conseguiu atender mais pessoas, colocar a universidade como uma referência nessa área, a tornou mais visível”, disse.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) vai produzir a vacina de Oxford no Brasil em parceria com a Unifesp. Foi anunciado publicamente esta semana que até o início de 2021 as vacinas começam a ser aplicadas. Mas a princípio, serão importadas as vacinas feitas pelo grupo farmacêutico anglo-sueco AstraZeneca. Em um segundo momento, a Fiocruz vai produzir.
A vantagem da vacina de Oxford, de acordo com a reitora, é que os dados já foram publicados em revistas científicas e que ela pode ser armazenada em geladeiras comuns, a 4º Celsius, e que cada frasco pode ser utilizado para vacinar 20 pessoas. Soraya afirma que o Brasil está preparado para distribuir vacinas como a de Oxford, em condições de geladeira e multidose.
A reitora afirma ainda que a vacina de Oxford é também a de menor custo. Ela está otimista e acredita que haverá vacina para todos, mas que a imunização ainda deve demorar. “Vai ter vacina para todo mundo? Vai. Mas no mês de maio de 2021 vai estar todo mundo imunizado? Não, isso é uma ilusão”, declarou.
Reitoria
A sua trajetória até a reitoria da universidade foi, segundo ela, um processo de toda sua vida acadêmica. “Sempre tive um lado muito voltado para a ciência, o ensino, a atividade acadêmica, e outro em que sempre fui muito ativa nos conselhos, na política universitária desde estudante”, contou.
Soraya foi presidente de associações de professores, foi representante do conselho universitário por sete mandatos seguidos e sempre era a mais votada entre os professores. “Eu gosto muito de conversar com as pessoas e encontrar soluções. Para fazer ciência e ensino de qualidade, tem que ter uma instituição democrática, participação das pessoas, transparência, isso foi um processo ao longo de alguns anos”, disse.
Origem árabe
Soraya Soubhi Smaili é paulistana e filha de libaneses da primeira geração no Brasil. Seus pais vieram da região do Vale do Bekaa, no Líbano. “Meu pai chegou em 1951 e minha mãe em 1955. Eles se casaram aqui e tiveram quatro filhos, três meninos e eu, a caçula”, contou. Seu pai era mascate e depois se tornou comerciante e chegou a ter uma loja de móveis. Sua mãe ajudava nos negócios da família. Segundo Soraya, os dois eram grandes comerciantes e sabiam negociar muito bem.
“Meus pais fizeram questão absoluta que nós nos formássemos e estudássemos, eles nunca exigiram nada além disso, que tivéssemos uma educação formal, e isso foi um diferencial muito grande para mim, foi importante abrir esse caminho para minhas primas mais próximas e outras meninas da comunidade, porque como sou de uma família muçulmana e bem religiosa, há alguns anos atrás isso era um tabu, a sociedade era mais restrita”, contou.
A partir desse caminho do conhecimento, Soraya começou a se interessar pela cultura árabe, teve a oportunidade de visitar o Líbano algumas vezes e isso foi criando uma proximidade com sua cultura de origem.
“Primeiro, antes de mais nada, eu sou brasileira e isso sempre foi muito claro pra mim, mas mais tarde, depois da faculdade, eu fui tendo um interesse muito grande em ler, estudar sobre a cultura árabe, a causa Palestina”, disse.
Foi em 2004 que fundou com seu marido, Francisco Miraglia, o Instituto da Cultura Árabe (Icarabe), uma referência na divulgação da cultura árabe e muçulmana no Brasil, com a realização de seminários, estudos, artigos, mostra de cinema árabe, newsletter, entre outras atividades.
Em seu tempo livre, Soraya gosta de ler, principalmente biografias, e também de assistir filmes. “Por isso gosto muito do cinema árabe, conheço alguma coisa, gosto de estudar o cinema árabe e também gosto de escrever sobre a cultura árabe. Escrever é um prazer para mim”, concluiu.