São Paulo – A Divina Comédia, datada entre 1300 e 1321, foi escrita pelo italiano Dante Alighieri e se tornou uma das obras mais famosas da Idade Média. Mas e se essa obra tiver sido profundamente inspirada em outros autores? Autores árabes. “Esse poema, que se torna o ícone do cristianismo, na verdade está cheio de influência árabe. Isso é interessante para mostrar a influência de toda cultura árabe e islâmica na literatura europeia. No caso do Dante, então, é escandaloso, porque é praticamente a principal obra medieval, a mais conhecida”, destacou a pesquisadora e doutoranda pela Universidade do Porto, em Portugal, Fernanda Pereira Mendes (foto acima), em entrevista à ANBA.
A pesquisadora brasileira que atualmente reside em Portugal vai lançar a primeira tradução para português de O Livro da Escada de Maomé. A obra reúne textos em árabe e é decisiva para apontar as semelhanças entre seus trechos e os que teriam sido reproduzidos no clássico A Divina Comédia. A tradução para português será lançada em fevereiro de 2019 em Portugal e no Brasil. “É uma grande obra que inspirou A Divina Comédia. Na atualidade, no meio desse sentimento anti-islâmico, é um resgate desses laços tão frutíferos. Duas obras canônicas que jogam luzes sobre um período histórico onde houve a convivência, inclusive com os judeus também”, apontou Mendes.
O período de convivência com os árabes e mouros teve início por volta do século VIII na Península Ibérica, deixando o chamado legado Al Andalus. “Nesse tempo, houve convivência dos povos na Península, onde hoje é a Espanha e Portugal, essa cultura foi de certa forma miscigenada”, pontuou a estudiosa que, então, descobriu a influência árabe em A Divina Comédia. “Dante reconhecidamente é um gênio, mas por conta da expulsão dos árabes as pessoas relegaram a influência deles na cultura europeia. Com isso, a obra de Dante não foi devidamente estudada. Essa influência não está devidamente descrita.”
O Livro da Escada de Maomé
Para ter chegado às mãos do italiano, os manuscritos árabes passaram por eruditos, provavelmente judeus, e por religiosos que teriam feito as primeiras traduções, revela Mendes. Ela conta que O Livro da Escada de Maomé pode ter chegado às mãos de eruditos europeus após as traduções feitas pelo Rei Afonso X, de Leão e Castela, que foi da escola de tradutores de Toledo. Foi o nobre quem traduziu a obra, antes em árabe, para o castelhano, o latim e o francês, segundo Fernanda.
O nascimento de Dante foi no ano de 1265, enquanto a tradução do Rei Afonso X data de 1264, conforme revela a pesquisadora. “A tradução saiu da Espanha e chegou a outros lugares, um deles a Toscana, onde viveu Dante. Sabemos disso por causa de testemunhos deixados em conventos por religiosos, que deixavam escritos em sua grande maioria datados”, explicou.
Assim como no poema italiano, a história árabe conta como seu personagem principal, Maomé, visita locais no céu e no inferno, guiado por outro personagem, o Anjo Gabriel. “Tem coisas que ficam muito parecidas. Não dá para falar que não é, entende? Fica inegável. No escrito sobre o céu é um pouco diferente, mas as passagens no inferno têm coisas que são iguais, como um pecador punido que se torna cinzas e volta a ser ele próprio, isso o dia inteiro em ambas as obras. Não dava para ser tanta coincidência”, destacou a pesquisadora.
Antes mesmo de O Livro da escada de Maomé ser descoberto, um visionário apontou a influência árabe. Foi Miguel Asín Palacios, padre jesuíta que viveu na Espanha. “Ele percebia muitos paralelismos entre os dominicanos e os sufistas, ambas ordens monásticas. Os sufistas tinham visões, por exemplo, e nos manuscritos encontrados em árabe e em latim havia essas narrativas”, explicou Fernanda. “Palacios viu isso em trechos de autores como Ibn Arabi (autor árabe) e fez estudos provando que A Divina Comédia repetia argumentos inteiros. Ele se aprofunda e fala que essa narrativa era muito famosa na Idade Média e Dante ficou sabendo”, pontuou. Os sufistas não são exatamente monásticos, pois não existem ordens do gênero no Islã, mas certos seguidores desta corrente, como os dervixes, podem ser considerados o que há de mais próximo de monges entre os muçulmanos.
Na época, Palacios ingressou na Real Academia da Espanha com seu trabalho, considerado erudito e fundamentado. “Mas foi um escândalo, porque a Europa estava colonizando os países árabes. Para os italianos, então, criou aquela polêmica e divisão”, relatou Fernanda. Apenas em 1949, dois estudiosos dantistas encontraram os manuscritos que formam O Livro da Escada de Maomé, em duas traduções: para latim, encontradas no Vaticano e em Paris (França), e em francês antigo, em Oxford (Inglaterra).
Tradução para o português
Para publicar a tradução em português de O Livro da Escada de Maomé, o ano de 2019 foi escolhido também por celebrar o centenário da obra de Palacios e os 800 anos de Dante. Nos anos 90, a obra havia sido traduzida para o espanhol, francês, italiano e inglês. “Portugal também pertence a esse legado do Al Andalus. Muita gente acaba esquecendo a relação de proximidade que sempre existiu entre a cultura ocidental e a islâmica. Esquecem esses períodos históricos e a contribuição dos árabes e islâmicos para a cultura mundial”, pontuou a pesquisadora. A obra será financiada em Portugal pela Universidade do Porto, e no Brasil a autora firmou parceria com o Centro de Estudos Árabes (CEArusp), na USP.