São Paulo – Sami começou a tocar alaúde aos seis anos. Prestes a fazer 50, ainda são amigos inseparáveis. É a sua paixão primeira e, embora toque muitos instrumentos, é com ele que Sami Bordokan é frequentemente visto em fotos e nos palcos. A naturalidade com que aprendeu a dedilhá-lo foi a mesma com que aprendeu a falar árabe. Em casa, onde a música era o estado natural da família, só se falava o idioma. “Meu pai é um alaudista muito habilidoso e um cantor excelente, mas nunca exerceu a atividade artística profissionalmente”, conta. “Seu avô, sacerdote da Igreja Greco-Melquita, onde a liturgia bizantina é proferida, era dono de uma voz magnífica. Todos os meus tios foram agraciados com belíssimas vozes e talento musical excepcional, cresci ouvindo eles cantarem, mas sou o primeiro a me tornar músico profissional na família.”
Embora os pais tenham nascido em vilarejos a vinte minutos de carro um do outro, em Akkar, no Líbano, eles só viriam se conhecer no Brasil, para onde migraram em busca de melhores condições de vida. Além da iniciação precoce no alaúde, um dos mais antigos instrumentos que se tem notícia, Sami estudou violão clássico e popular, órgão clássico e piano. Adolescente, partiu para uma aventura na terra dos pais onde acabou morando por nove anos. Frequentou a Universidade Saint-Esprit de Kaslik (Usek), na qual foi aluno no departamento de música oriental. “Tive aulas particulares com mestres renomados e me aprofundei na teoria musical oriental (Maqamat Charquie) e no canto clássico árabe, mais especificamente o Muashah Andaluzo”, explica.
A música árabe remonta à cultura ancestral do Oriente Médio e, num dado momento, se torna um importante pilar da erudição da sociedade daquela época. “Com o avanço da civilização árabe islâmica, a partir do século VII, temos um processo intenso de erudição na música”, conta Sami. “Lembrando que nesse período a música fazia parte da medicina. Al Kindi (considerado o pai da filosofia islâmica), Avicena e Al Farabi foram grandes nomes da música nesse período, eram todos médicos e exímios alaudistas”.
Se por um lado a música fazia parte da formação erudita, por outro, é transmitida por gerações graças ao que Sami chama de “capacidade fantástica dos povos árabes em manter e perpetuar suas tradições no âmbito popular”. É difícil falar em uma música árabe apenas, já que cada região guarda suas particularidades culturais, compondo um rico e diverso mosaico musical. “Ao mesmo tempo, compartilha-se um gigante acervo erudito comum a todos os povos árabes como, por exemplo, o Muashah Andaluzo.”
Sami transita do clássico ao folclórico, também inclui gêneros brasileiros em seu repertório. Em seu site, é possível ver um vídeo em que ele e outros músicos tocam uma espécie de chorinho, mas com o alaúde no lugar do cavaquinho ou bandolim. “A música brasileira faz parte do meu imaginário, afinal, também sou brasileiro e amo muito esse País e sua riquíssima tradição musical. Gosto muito de construir pontes musicais entre essas duas culturas”.
Quando voltou do Líbano e fez sua primeira apresentação em uma sala de música clássica, ficou surpreso e encantado com a receptividade dos ouvidos brasileiros à música ancestral oriental. Quase trinta anos depois, ele prepara um álbum que é uma síntese da sua carreira, com um misto de repertório clássico árabe e músicas autorais que traçam um caminho entre o oriental e o brasileiro.
Ator por acidente
O músico também já compôs para peças de teatro, para o cinema e para a televisão, como na novela Órfãos da Terra e na minissérie Dois Irmãos, inspirada na obra do escritor de origem libanesa, Milton Hatoum, exibida na TV Globo em 2017. Foi neste trabalho que Sami virou ator por acidente ao ser convidado pelo diretor Luiz Fernando de Carvalho para fazer um papel. “Nunca imaginei que um dia iria atuar até receber o convite”, confessa o músico, que tomou gosto pela arte e agora se prepara para voltar aos palcos como protagonista de O Profeta.
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Inspirada em um dos livros mais populares do mundo, do poeta libanês Gibran Khalil Gibran, a peça dirigida por Luiz Antônio Rocha teve uma curta temporada em São Paulo, em outubro, e deve reestrear entre março e abril de 2023, quando o livro completará cem anos. “É uma responsabilidade enorme e tenho me dedicado de corpo e alma para estar à altura desse desafio”, diz o músico, que além de cantar, tocar e atuar, também assina a direção musical da peça, ao lado de Willian Bordokan, seu irmão.
Reportagem de Débora Rubin, especial para a ANBA.