São Paulo – Dos sonhos da infância até pisar em solo egípcio pela primeira vez, a egiptóloga brasileira Thais Rocha (foto acima) percorreu um longo caminho. “O interesse sobre o Egito sempre existiu, desde criança. Fui muito abençoada porque minha família sempre me incentivou. Fiz o curso de História porque no Brasil não existe egiptologia em nível de graduação”, contou ela em entrevista à ANBA. Rocha concluiu em fevereiro deste ano seu doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e faz questão de não glamourizar a profissão. “Algumas pessoas me perguntam qual o ‘caminho das pedras’. Mas não há uma resposta. Eu dei aula de História para Ensino Médio durante muito tempo, trabalhei também no Masp (Museu de Arte de São Paulo), para poder me manter mesmo. Trabalhar com pesquisa no Brasil não é fácil”, destacou.
Ela concluiu a graduação em História em 2001 e ingressou em 2010 no Mestrado em Estudos Judaicos e Árabes, ambos na Universidade de São Paulo (USP). Quase uma década se passou entre um curso e outro, período no qual Rocha trabalhou em outras instituições e continuou assistindo aulas e estudando temas ligados à antropologia. Quando ingressou no mestrado, Rocha passou a se debruçar sobre um tema que a acompanha até hoje, o estudo do espaço doméstico no Egito que vivia sob domínio grego, no chamado período helenístico. “O espaço da casa é tão óbvio porque é a primeira experiência que você tem. Mas justamente por ser tão óbvio não se questiona”, pontuou.
Durante o mestrado ela explorou, ainda, um recorte mais específico: o de gênero. “Fiz dissertação sobre cartas de mulheres egípcias. Sempre achei as cartas muito pessoais, quase como se pudesse ouvir o sujeito. Estamos falando da elite, é uma camada social que tinha acesso à leitura. A mulher tinha muito mais espaço de ação social do que imaginamos para a época”, explicou ela.
Para além de questionar o olhar lançado sobre as mulheres egípcias do período, a pesquisadora passou a rever a definição de casa para aquela sociedade. Assim, Rocha terminou o mestrado não com uma afirmação, mas com uma nova dúvida. “Comecei a pensar o que era esse espaço doméstico, não apenas no período helenístico. Muitas pessoas falam sobre como a mulher ocupava o espaço da casa. Mas ninguém fala sobre como eram as casas egípcias”, afirmou a egiptóloga.
Para explorar a questão, a brasileira teve apoio de pesquisadores que havia conhecido ainda antes de dar início ao mestrado. “Quando estive na Inglaterra e Chicago, pude fazer pesquisas e me apresentei ao time de egiptólogos. Foi impressionante a generosidade dos professores na Inglaterra. No Brasil, continuei me correspondendo com eles. Durante o mestrado, conheci uma das minhas orientadoras, a Elizabeth [Frood, da Faculty of Oriental Studies], que me falou sobre me inscrever para o doutorado. Pensei que ela estava sendo simpática, mas quando acabei o mestrado ela me cobrou e eu pensei: Vamos lá!”.
O curso em Oxford, no entanto, também teve seus percalços. Na primeira tentativa, em 2014, a brasileira foi aceita, mas não conseguiu bolsa. “Imagina a frustração. Ser aprovada em um centro de excelência como esse e não conseguir ir. Tentei patrocínio e não consegui. Perdi a vaga e tive que fazer de novo. E a vida tem coisas que não esperamos porque no ano seguinte saíram 3 bolsas, e pude até escolher”, contou ela, que teve na bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em seu período em Oxford.
No decorrer dos quatro anos de doutorado, outras dificuldades como o adoecimento da orientadora fizeram com que Rocha precisasse de outra professora para apoiá-la durante essa ausência, e ela conheceu Linda Hulin, da School of Archaeology. “Por fim, Elizabeth voltou e eu pude contar com essas duas orientadoras, uma referência em egiptologia e outra em arqueologia”, relembrou.
A pesquisadora então começou analisando duas vilas de trabalhadores do Egito, Deir el-Medina e Amarna. Mas conforme os estudos foram se tornando mais profundos, ela decidiu se dedicar somente a Amarna. A vila foi escavada em 1921 e 1922 e, mais atualmente está sob os trabalhos do Amarna Project, que é englobado por universidades como a de Oxford. Em seu segundo ano de doutorado, Rocha, que ainda não tinha tido a oportunidade de ir ao Egito, pediu para visitar o trabalho do projeto na vila. “Perguntei para a vice-diretora e acabei integrando a equipe! É um dos maiores projetos que escava e estuda a arqueologia e história de Amarna há pelo menos 40 anos”, explica ela, que segue membro do Amarna Project.
A brasileira participou dos trabalhos de campo no Egito por dois meses em 2017 e mais um mês em 2018. “Tive muito apoio dos pesquisadores. Isso foi importante porque você consegue conversar com os profissionais. O espaço de Amarna é o melhor lugar para estudar casas no Egito”, contou ela.
A casa nos espaços comuns
A vila em Amarna era formada por trabalhadores assalariados no período do faraó Akhenaton, mas ficou ocupada por apenas 20 anos. O estudo de Rocha apontou que as vilas eram criadas pelo estado egípcio. “O estado fornecia material e plano inicial [para construção] e, muito provavelmente, as pessoas terminavam suas casas. As vilas eram mantidas pelo estado, que fazia delivery de água, comida, ferramenta. O assentamento era um grande espaço doméstico. A vila era como uma casa, um espaço de convívio. Esse arranjo de espaço funcionava de modo semelhante às casas das elites. Como as casas são pequenas na vila de trabalhadores, eles criam espaços comuns”, revelou a egiptóloga.
Assim, a definição de casa naquela sociedade seguia em espaços ampliados. “Vemos que a experiência de espaço doméstico dessas populações é muito mais do lado de fora da casa do que dentro. A questão do gênero também passa pela minha pesquisa, embora não seja o carro-chefe, é um dos recortes”, afirmou a pesquisadora.
Segundo ela, os trabalhadores tinham as áreas de suas casas demarcadas desde o início da vila, cuja primeira construção era o muro que a cercaria. Assim, os moradores precisavam se organizar e ter atividades como a criação de animais e mesmo espaços religiosos do lado de fora destes muros. “Isso abre espaço para outra pergunta: o modelo aparece em que período? Será que aparece em outros sítios arqueológicos?”, questiona, lembrando que a noção de casa vai depender de variáveis como período histórico, localização e cultura. “O espaço mais privado do sujeito [no Egito Antigo] é o deserto. É onde está sozinho. E o espaço da casa é aquele compartilhado”, destaca.
Agora os planos da brasileira são descobrir se esse modelo de moradia se aplica a outros sítios no próprio Egito. Em uma parceria com a orientadora de Oxford, Thais Rocha estuda como viabilizar esse projeto futuro. No presente, ela comemora a melhora que tem visto no campo de estudo da egiptologia no Brasil. “De 10 anos para cá, isso melhorou muito. Tenho colegas que conseguem estudar fora, ou fazem mestrados e doutorados sanduíches, que têm essas oportunidades. Que bom que melhorou”, diz ela, que acredita no potencial que o incentivo de bolsas de pesquisa como a CNPq trará à vida profissional dos futuros pesquisadores.