São Paulo – Com uma descoberta feita na Jordânia, pesquisadores brasileiros podem mudar o que a ciência pensa sobre a evolução e a migração humana. O estudo publicado na revista Quaternary Science Reviews neste mês revela a descoberta de ferramentas de pedra lascada datadas de 2,4 milhões de anos, as mais antigas encontradas fora da África. A pesquisa propõe com isso que os primeiros representantes do gênero Homo a deixarem o continente africano foram os Homo habilis, e não os Homo erectus, como se acredita atualmente, e 500 mil anos antes do que se pensava.
A pesquisa começou em 2013 e foi chefiada pelo brasileiro Walter Neves, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), responsável pelo estudo de “Luzia”, o esqueleto humano mais antigo das Américas. A missão foi realizada no Vale do Rio Zarka, no norte da Jordânia, e financiada majoritariamente pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, de Nova Iorque.
O Homo habilis fabricava ferramentas de pedra lascada do gênero conhecido como “indústria Olduvaiense”, como as que a equipe encontrou na Jordânia. “Uma pedra lascada é uma evidência. Isso documenta que havia vida inteligente. O [ambiente] Oriente Médio não é favorável à preservação do fóssil, mas você consegue encontrar evidência humana”, explicou à ANBA um dos pesquisadores da equipe, Giancarlo Scardia, italiano radicado no Brasil. Ele atua no Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
O projeto batizado de “Evolução biocultural hominínia no Vale do rio Zarqa, Jordânia: uma abordagem paleoantropológica” teve em sua equipe também o brasileiro Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e o italiano Fabio Parenti, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Istituto Italiano di Paleontologia Umana; além de colaboradores para as análises nos Estados Unidos e na Alemanha.
Quem saiu primeiro da África?
Até agora, o que se pensava é que o primeiro a sair da África, há 1,9 milhão de anos, havia sido o Homo erectus, que chegou ao Cáucaso, região entre a Europa Oriental e a Ásia Ocidental, há cerca de 1,8 milhão de anos, conforme aponta a descoberta da jazida paleoantropológica de Dmanisi, na República da Geórgia. Contudo, os cinco crânios encontrados em Dmanisi mostram grande variabilidade, o que torna a classificação do material muito discutida.
O modelo proposto pelas descobertas no Vale do Zarka é de que o Homo habilis teria surgido na África por volta de 2,5 milhões de anos, e chegado ao Oriente Médio por volta de 2,4 milhões de anos. Dali se espalhado pelo mundo, inclusive para o Cáucaso, por volta de 1,8 milhão de anos. No Cáucaso, o habilis teria dado origem ao Homo erectus, que dali migrou, inclusive, para a própria África.
Para Scardia, que fez as datações dos artefatos, a descoberta ajuda a explicar diversos mistérios relacionados à história dos hominídeos. “Até poucos anos, as pessoas ainda questionavam se a África era mesmo o berço humano, porque na Ásia tem muitas coisas antigas. A Ásia foi um berço secundário. Agora, temos comprovante disso. Assumindo que houve uma migração muito antiga na Ásia, é provável que essa migração tenha formado outras espécies”, afirmou ele sobre o caso da Geórgia.
A pesquisa na Jordânia traz nova versão também para outra controvérsia na paleoantropologia: o Homo floresiensis, conhecido como o “Hobbit da Ilha de Flores”, na Indonésia. Esses fósseis encontrados há cerca de 10 anos, datados entre 20 mil e 90 mil anos, apresentam estatura de cerca de um metro e capacidade craniana de 350 centímetros cúbicos, menor do que a de um chimpanzé. Para os pesquisadores, se o primeiro hominínio a sair da África foi o habilis, fica mais fácil explicar o “Hobbit da Ilha de Flores”. Ele teria sido o resultado de encolhimento do habilis, também de estatura muito baixa (cerca de 1,2 m) e um cérebro muito pequeno (650 cm3), e não do erectus, de estatura de 1,17m, como muitos pensam.
O que muda, afinal?
Mas qual o significado disso, na prática? “Muda muito. É uma mudança paradigmática. Ele (o estudo) está propondo uma mudança de povoamento no universo da micro e de macro evolução humana. Fala-se de modelo complementar. Você tem que rever todas as coleções de fósseis e artefatos para reler e apresentar os resultados, e restabelecer o que acontece com essa ocupação do habilis antes mesmo de erectus”, explicou à ANBA o professor de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Sérgio Monteiro.
Para Monteiro, o momento é para que a comunidade científica reflita e avalie como as interpretações da evolução podem se dar a partir de agora. “Quando se lida com fósseis humanos, você está trabalhando com quebra-cabeças. Tem problemas para identificar a espécie com precisão. É uma atividade de pesquisa extremamente complexa. Você dizer que nos artefatos que encontrou tem indicadores de Homo habilis é como se fosse uma resposta relativa. Ainda não é completa. Como ele encontrou os artefatos, as pesquisas precisam continuar para que se encontrem mais. Só que temos um problema, muitas regiões no planeta não favorecem preservação de corpos”, ponderou Monteiro.
O trabalho em campo
Em 2013, a equipe realizou a primeira viagem à região jordaniana, que escolheram graças ao conhecimento prévio do pesquisador Fabio Parenti, que nos anos 90 trabalhou na área. “Lá, conversamos no Departamento da Antiguidade da Jordânia e visitamos a área da escavação arqueológica. Fomos recebidos muito bem. Estabelecemos ótimos contatos”, explicou Scardia. No ano seguinte, a equipe fez seu primeiro trabalho de campo, durante um mês, que se seguiu por um mês em 2015 e dez dias em 2016. Em 2017, feitas as coletas de amostras, os cientistas começaram a análise dos materiais, aqui no Brasil.
Das centenas de peças analisadas, três ficaram na USP e as demais foram devolvidas à Jordânia. Para Scardia, os principais desafios do trabalho em campo foram as diferenças culturais e linguísticas. “O problema da língua foi resolvido rapidamente. Encontramos jovens muito motivados que falavam fluentemente inglês e árabe. Ficamos superfelizes porque é um país tranquilo”, afirmou.
O choque cultural se deu por parte da equipe voluntária – entre alunos e pesquisadores – ser formada por mulheres brasileiras, o que surpreendia alguns dos jordanianos que auxiliaram na expedição. “Mas isso não criou nenhum drama. A Jordânia é um país livre, muito aberto e seguro”, ponderou Scardia. “Na época em que fomos, estávamos perto da guerra da Síria, mas foi muito fácil trabalhar na Jordânia porque eles são muito profissionais. Isso faz muita diferença no sucesso do projeto. Houve diálogo positivo com os jordanianos”, completou.
Retorno à Jordânia
Agora, os pesquisadores querem seguir com os estudos em campo. “Isso (a descoberta) é absolutamente inovador. Seria possível? Sim. Agora, só o material do artefato não é suficiente. É um problema científico. Eu gostaria de ver os esqueletos [dos habilis]. Nós lidamos com vestígios. E os de lá são artefatos líticos (de pedra). Você tem que ter mais, e é isso que os pesquisadores vão buscar: mais”, declarou Monteiro, da UFPE, sobre os artefatos feitos com pedra lascada.
O próximo passo é conseguir novos recursos. “O trabalho não acabou. Temos que continuar para fortalecer essa pesquisa. Queremos voltar a Jordânia no próximo ano. Nós temos perguntas: Quais os meios de sobrevivência desses hominíneos na Jordânia? Como foi possível? Qual era o clima?”, questionou Giancarlo Scardia.
Assista, abaixo, a entrevista de Walter Neves à TV USP: