São Paulo – Passados quase dez anos da estreia de “Cartas Libanesas”, o idealizador e ator desse monólogo, Eduardo Mossri, consegue olhar para trás e reconhecer na concepção do projeto um resgate familiar e de autoconhecimento. “Eu tinha menos de 30 anos quando tive a ideia da peça, e não sabia muito bem como ou a razão de fazer. Mas conhecer a história dos meus avós, somada a tantas outras, me fez entender até porque eu virei ator”, conta ele.
Nascida em Dar Baachtar, Emilia Elias veio do Líbano para concretizar um costume entre famílias: as uniões arranjadas. Ela chegou com 16 anos para se casar com João Antônio Mossri, um libanês desconhecido e mais velho do que ela, que havia desembarcado anos antes no Brasil e vivia em Mogi das Cruzes, uma cidade no interior de São Paulo, onde até hoje mora uma grande concentração de imigrantes e seus descendentes. “Não conheci o pai do meu pai, mas sempre tive uma conexão muito forte com essa minha avó libanesa. E esse era também o lado da família (da avó) cuja história eu menos conhecia”, revela. “Penso na história do meu pai, que cresceu sem tios, tias, primos, avós. Só tinha pai, mãe e irmãos. Ser filho de imigrantes é muito árduo, pois as referências se perdem.”
Depois que dona Emilia morreu, segundo os documentos oficiais, aos 98 anos, o neto encontrou entre os guardados da avó um conjunto de cartas escritas em árabe, cuidadosamente amarradas com uma fita. “Foi através dessa correspondência de parentes que ficaram no Líbano e que ela nunca mais viu, que pude entender, um pouquinho, de como eles eram, a escrita, a maneira como falavam. Entre as cartas que traduzi, por exemplo, para dizer que estava com saudade, quem a escreveu usou uma página inteira com metáforas dramáticas: ‘meu coração está em labaredas, queimando pela ausência de quem não vejo há tempos’…”
O texto da peça ficou pronto em 2009, mas antes de estrear, em 2015, Mossri quis a experiência de viver fora do Brasil. “Eu escolhi morar em outro país, sabia o que ia fazer, e tive apoio. Fui nas melhores condições possíveis e falava com meus pais por telefone e vídeo, e ainda assim, não foi fácil. Então, pensava nos meus avós, cujas notícias chegavam por cartas, com meses de atraso nas informações, potencializando dores e saudades, afetos e dificuldades.”
“Cartas Libanesas” é marcada por uma rica carga emocional, que transita entre a esperança de um futuro melhor e a dor da perda e do desenraizamento. Interpretando a história desse personagem, um mascate que deixa a esposa grávida no Líbano para tentar a sorte no Brasil, Mossri recebeu propostas “inesperadas e incríveis”. Uma delas foi o convite para ser o Dr. Faruq, um médico sírio que imigra para o Brasil depois de perder a mulher e o filho na guerra em “Órfãos da Terra”, escrita por Thelma Guedes e Duca Rachid (TV Globo, 2019) com a temática dos refugiados. A novela foi ao ar no horário das seis, em que as narrativas costumam ser mais leves. “Esse trabalho recebeu vários prêmios internacionais, como o Emmy, e eu acho isso emblemático. Acho que o grande trunfo da novela foi a capacidade de trazer um tema tão caro, tão delicado, e necessário de ser falado, universal, para a teledramaturgia.”
Outra surpresa trazida pela peça foi o convite da Embaixada Brasileira no Líbano para se apresentar em Beirute. “Sempre quis conhecer o país dos meus avós, e nessa oportunidade pude ir até a aldeia onde minha avó nasceu. Não sabia que o teatro me levaria até lá”. Ele acredita que muitas pessoas têm uma imagem equivocada do que é ser ator. “Acham que porque viajamos com uma peça, por exemplo, a vida é fácil. Mas eu conheço os bastidores desse ofício tão artesanal, as dificuldades para conseguir patrocínio, inscrevendo projetos em editais a fim de viabilizar uma ideia…”
Formado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Mossri é bacharel em Interpretação, mas não acredita que, para ser ator, seja necessário ter uma graduação. “Porém, a bagagem que isso dá de repertórios, de conhecimento, de profissionais da área que encontro, essas trocas… acredito que tenha feito diferença na minha carreira.” Ele conta que nas primeiras leituras que fez para o papel do médico refugiado, os colegas de elenco perguntavam como ele tinha chegado pronto, já que tinha até um sotaque característico. “Sou um ator de teatro e precisei fazer ajustes para esse registro de atuação na TV, mas tivemos uma ótima preparação. Além de a história estar relacionada à minha ancestralidade. Foi uma experiência gratificante e coerente com minha trajetória profissional.”
Cartas da Mulher Libanesa
Para Mossri, nesta década de apresentações, o espetáculo amadureceu e nesse processo, surgiu o projeto de uma nova peça teatral. “Percebi que faltava o outro lado da história. Onde está a voz dessa mulher, o que ela sente, grávida e longe do marido?” Para responder essas questões e construir uma dramaturgia, ele convidou Duca Rachid, que também tem ascendência libanesa. Em “Cartas da Mulher Libanesa”, marido e mulher estão em cena, eles se escutam mas não se vêem. O trabalho, que tem estreia prevista para 2025, está sendo feito por uma equipe majoritariamente feminina: “para que as narrativas femininas não sejam apagadas, como historicamente costuma acontecer”, explica Mossri.
Leia também:
Mascate libanês nos palcos de São Paulo