Por Roberto Khatlab*
No fim do século XIX nasceu no Oriente árabe um movimento cultural, literário, político e religioso chamado al-Nahda, que em português quer dizer O Renascimento. Essa corrente despertava naquela época a esperança de libertação e redescoberta do patrimônio árabe, que havia sido alterado durante o domínio otomano nos países árabes.
Os principais centros geográficos do movimento al-Nahda foram as cidades do Cairo, Beirute e Damasco. Os intelectuais que se mostraram num primeiro momento as grandes referências dessa corrente, entre outros, foram o egípcio reformador Rifa’a el-Tahtawi, que viveu entre 1801 e 1873, e o linguista do Líbano, Boutros al-Boustani, que viveu dos anos 1819 a 1883.
O Egito foi o berço da imprensa escrita em árabe e foram os libaneses, que emigraram para o Egito no século XIX fugindo da opressão otomana, que lançaram os primeiros jornais no sentido moderno do termo. Um exemplo é o jornal Al-Ahram, que quer dizer As Pirâmides, publicado em 1875 no Egito por Salim e Bechara Tacla. O jornal, inclusive, relatou a viagem de Dom Pedro II ao Egito, em 1876, e está em atividade até hoje.
Com a emigração árabe ao Brasil, chamada em árabe de al Mahjar, o movimento al-Nahda se expandiu para além-mar, e a nova terra dos árabes se tornou também um dos centros importantes do renascimento da literatura árabe.
A imigração árabe ao Brasil acontecia desde o século XVIII, tendo um dos primeiros imigrantes em Joseph Ibrahim Nehmé, que saiu de Deir El Kamar, no emirado do Monte Líbano, em 1795, e a Grande Imigração ocorreu no século XIX. Com esse deslocamento, os camponeses e intelectuais, particularmente libaneses e sírios, que se tornaram mascates em cidades brasileiras, difundiram em todo o território do País também a cultura árabe, além do comércio ambulante.
Os imigrantes levaram com eles ao Brasil não apenas o jeito de fazer comércio, mas também os jornais árabes. Assim, o País ficou conhecido como a Nova Andaluzia, que em árabe quer dizer Al-Andalus Al-Jadidat, pela quantidade de obras de literatura arabista e nacionalista de cunho moderado e moderno que foram produzidas pelos árabes e seus descendentes no Brasil.
O primeiro jornal publicado no Brasil e na América Latina em língua árabe foi o Al-Fayha, Mundo Largo. Feito por Salim Iuhana Balich, de Zahle, ele foi veiculado em Campinas, no estado de São Paulo, em 1894. Um pouco antes, na América do Norte, em 1888, havia sido publicado em Nova Iorque o jornal árabe Kaukaba América, que pode ser traduzido como Planeta da América, de autoria dos irmãos Nagib e Ibrahim Arbili. Em 1896, Balich criou o segundo jornal, chamado Al-Barazili, que em português é O Brasil, em Santos, São Paulo, juntamente com Antun Najar, igualmente de Zahle. Depois o jornal Al-Fayha fundiu-se ao jornal Al-Barazili, em 1897.
A partir de 1894 o número de jornais, revistas e livros em idioma árabe e bilingues árabe-português floresceu no Brasil. Eles eram para os árabes uma ligação social que ajudava a conservar a língua materna e costumes e a difundir as novidades do Oriente. Além do Al-Barazili, surgiram jornais como al-Rabik, de 1896 e que quer dizer O Observador; e al-Munázir, O Replicador, de 1899. Em 1900 foi criado o grupo literário, cultura, social e político com o nome do grande poeta árabe de Alepo, Abū-l-ʿAlā’ al-Maʿarrī, em São Paulo, pelo jornalista e político Naun Labaki, no intuito de ser um local para encontro dos letrados árabes e para ensinar a ler e a escrever em língua árabe aos principiantes, a maioria mascates árabes.
Em seguida surgiram vários outros jornais e revistas árabes, como Al-Afkar, Os Pensamentos, 1903-1941 de Said Abujamra, que era, na verdade o antigo jornal Al-Barazili que mudou de donos e nome. Também surgiram publicações como Al-Carmat, A Vinha, 1914-1948, de Salwa Atlas, que foi a primeira revista feminina nas Américas. Entre as muitas outras publicações que apareceram na época estiveram Suria Al-Jadidat, a Nova Síria, de 1918 e de Habib Hanun; a Revista Oriente, em 1928, de Mussa Kuraiem; Etapas, 1955-1983, de Mariana Dabul Fajuri; Al-Akhbar Al-Arabe, Notícias Árabes, de 1961 e de Nabih Abou El Hosn e Assaad Zaidan.
Também foram escritos e traduzidos vários livros em árabe, como História do Brasil, de 1918, de Georges Mikhael Atlas, com edição em árabe e português e no qual era o conteúdo da primeira página: Deixae que setenta milhões de habitantes do mundo que fallam a língua árabe, leiam a história de uma gloriosa nação [Brasil].
Na imigração, época do império otomano, os meios de imprensa facilitaram a vários intelectuais a publicação de suas ideias, ao ponto que o império proibiu algumas obras publicadas em outros países de circularem nos países de origem pois alguns escreviam contra os otomanos e divulgavam as oportunidades de emigração para o Brasil.
Sobre esse movimento, escreveu Jamil Safady no livro Coleção Brasil-Líbano-Síria, de 1949: “A fama da imprensa árabe no Brasil ultrapassou as fronteiras da nossa Segunda Pátria [Brasil], para ser conhecida e admirada em todos os continentes, levando tão longe o belo nome do Brasil, difundindo as suas notícias e fazendo com que a simpatia dos povos árabes pelo Brasil e por seu povo seja enraizada… A história da imprensa árabe no Brasil será um gigantesco esforço, que legará à história farta e preciosa documentação de um movimento de expansão jornalística, sem par nos anais”.
Entre 1920 e 1950, surgiram centros literários nas colônias de imigrantes. No Brasil foi fundada a Liga Andaluza de Letras Árabe, que vigorou de 1933 a 1953, em São Paulo, e teve como primeiro presidente o escritor Michel Neman Maluf, seguido por outros como Habib Massoud, Chafik Maaluf, Nazir Zeitun, Fauzi Maluf, Iskandar Kerbaj, Nasr Semaan, Dauod Chakour, Antun Salim Saad, Naum Labaki, Chukrallah Al Jurr e Akl Al-Jurr, entre outros.
A Liga Andaluza publicou a revista al-Usbat, que em português quer dizer A Liga, com a edição de Habib Massoud. A Liga foi uma das principais revistas publicadas pelos imigrantes árabes no Brasil e era também lida com entusiasmo no mundo árabe, onde a literatura estava apenas começando a se libertar de um tradicionalismo obsoleto e rígido. A revista A Liga contribui no movimento da Renascença Árabe.
Em 1937, foi fundada a Associação da Imprensa Libanesa, no Rio de Janeiro, a primeira das Américas. Ela foi lançada por José Nassif Daher e Chukrallah Al Jurr, e aumentou a efervescência cultural, com publicações em língua árabe e portuguesa de conteúdos de história, política, literatura, cultura, sociedade e comércio.
O Brasil ultrapassa, no século XX, todos os países das Américas em número de títulos de publicações feitas por imigrantes árabes e descendentes. Segundo o historiador libanês Philippe de Tarrazi, em 1929 no Brasil eram publicados 29 jornais e 13 revistas pela imigração. De acordo com outro historiador, também libanês, Philippe Hitti, em 1950 eram publicados, na América do Sul, 165 jornais, dos quais 95 no Brasil, 58 na Argentina, oito no Chile, três em Cuba e um no Uruguai.
Todos os imigrantes pioneiros, que chegaram ao Brasil entre os séculos XVIII e XX, deixaram um legado extraordinário através de suas obras e comércio. Os intelectuais deixaram um grande patrimônio escrito, como vimos acima resumidamente, com relatos da história, política, cultura, literatura do mundo árabe, sob o império otomano, sob mandato francês ou na independência.
Esse patrimônio, os arquivos que resistiram ao tempo, são fontes preciosas para conhecermos as lutas dos primeiros imigrantes no Brasil. Essas riquezas estão em associações, bibliotecas e lares árabes em todo o Brasil. Para reunir e conservá-las, desde 1918, a Biblioteca e o Centro de Estudos e Culturas da América Latina da Universidade Saint-Esprit de Kaslik (USEK), do Líbano, e a Câmara de Comércio Árabe Brasileira, com seu braço cultural Casa Árabe, do Brasil, realizam a busca desses arquivos no Brasil e os digitalizam, como parte de um projeto de digitalização da memória da imigração árabe na América Latina.
Graças às associações, bibliotecas, famílias, indivíduos que têm esses materiais e nos dão a oportunidade de digitalizá-los, podemos salvar e conservar esse grande patrimônio da imigração árabe no Brasil e na América Latina. Somos agradecidos por isso. Às vezes é apenas um jornal, mas completa uma coleção. As publicações citadas acima, inclusive a coleção digital completa da revista A Liga, estão no acervo, após as suas edições, que estavam espalhadas no Brasil e no Líbano, terem sido reunidas.
Os arquivos digitais e físicos estão na Biblioteca da USEK, na Coleção Especial América Latina, e são abertos a todos os pesquisadores e interessados em pesquisar o assunto. Para isso, basta acessar o catálogo. Para mais informações sobre o assunto, entre em contato com a USEK em reference@usek.edu.lb ou robertokhatlab@usek.edu.lb ou projetousek@ccab.org.br. Quem também tiver material deste patrimônio, contate-nos para digitalizar gratuitamente e seu nome fazer parte do acervo da Coleção Especial América Latina da USEK.
*Roberto Khatlab é pesquisador e escritor, diretor do Centro de Estudos e Culturas da América Latina na Universidade Saint-Esprit de Kaslik (USEK), do Líbano, e autor do livro “Mahjar, a Saga Libanesa no Brasil”, que é bilíngue, árabe e português.