São Paulo – Desde que assumiu o Ministério das Relações Exteriores em sua segunda passagem pela pasta, o chanceler Mauro Vieira já esteve em diversas cidades do mundo inteiro. Como parte do seu trabalho, participou de eventos e encontros na Etiópia, Egito, Líbano, Jordânia, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos e Bélgica, apenas para citar alguns dos destinos em que esteve.
Uma parcela significativa dos seus discursos e reuniões foi consumida pelo desafio em levar a mensagem de solução de conflitos a partir do diálogo. Formado em Direito pela Universidade Federal Fluminense, em 1973, e Diplomacia pelo Instituto Rio Branco no ano seguinte, Vieira é também doutor honoris causa em Letras pela Universidade de Georgetown, em Washington.
Fluminense de Niterói, no Rio de Janeiro, Vieira, de 73 anos, já comandou o mesmo ministério entre 2015 e 2016 e foi, entre outras atividades, embaixador do Brasil na Argentina (2004-2010), Estados Unidos (2010-2015), representante permanente do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York (2016-2020), e embaixador do Brasil na Croácia, entre 2020 e 2022, até ser empossado novamente como titular do Itamaraty em 1º de janeiro de 2023 pelo atual presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.
Vieira tem cumprido também agenda recorrente nos países árabes, onde um dos principais – mas não o único tema – de suas visitas é o conflito na Palestina. Na entrevista a seguir, concedida à ANBA por e-mail em 6 de junho, Vieira fala sobre as relações entre Brasil e países árabes, sobre os objetivos do País na busca de dois Estados soberanos no Oriente Médio – Palestina e Israel – e sobre uma possível intensificação da sua agenda aos países do Golfo já no segundo semestre.
ANBA – Recentemente, o senhor visitou Cisjordânia, Líbano, Jordânia e Arábia Saudita. Poderia comentar a impressão que teve ao visitar essas nações árabes? Deverá retornar a estes ou ir a outros países árabes ainda em 2024?
Mauro Vieira – Além de tratar da grande diversidade da agenda diplomática bilateral, nas quatro visitas, fiquei muito impressionado com a ampla repercussão das posições do Brasil sobre a tragédia de Gaza. Uma tragédia causada pela ação humana, é importante que se diga sempre. Me impressionou muito também a gratidão das autoridades dos quatro países pela liderança do Presidente Lula no debate sobre o conflito israelo-palestino e também sobre a necessidade urgente de atenção aos civis em Gaza. Na Palestina, no Líbano e na Jordânia fui recebido por chefes de Estado e de governo, e todos eles, em uníssono, nos mesmos termos, manifestaram reconhecimento pela coragem do Presidente Lula e da diplomacia brasileira ao assumir a defesa dos civis palestinos, e a necessidade da retomada das negociações de paz na região, tendo como objetivo a consecução da solução de dois Estados. A atuação diplomática do Brasil no sentido de obter a admissão da Palestina como membro pleno da ONU e de ampliar o número de países que a reconhecem como Estado, também foi muito elogiada. Para os líderes com quem conversei, é fundamental o engajamento de países do peso do Brasil no esforço por um cessar-fogo em Gaza, no debate sobre o conflito e na busca de soluções diplomáticas que contemplem o reconhecimento do Estado palestino por toda a comunidade internacional.
Desde que regressei, o diálogo com a região continua estreito, e terá sequência nos próximos dias. Nesta sexta-feira [07] farei visita bilateral ao Marrocos, farei também, na semana seguinte, uma visita bilateral à Turquia, e também participarei de reunião de chanceleres dos BRICS [grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e os novos integrantes que Vieira cita a seguir, além da Etiópia], nos dias 10 e 11 deste mês, na Rússia, já com a participação dos cinco novos membros do grupo, entre eles a Arábia Saudita, o Egito, os Emirados Árabes Unidos e o Irã. O formato ampliado dos BRICS oferece também uma oportunidade de estreitamento ainda maior das relações com os novos países membros, tendo em conta o fato de que o Brasil presidirá o agrupamento no ano que vem.
A Palestina passa, atualmente, por um conflito de diversas proporções, principalmente humanitárias. E até no Líbano cidadãos brasileiros foram recentemente atingidos. Qual o caminho que o Brasil entende ser o ideal para o fim deste conflito e para a paz de longo prazo? E como trilhar este caminho?
A dimensão humanitária é a mais dramática, e a história será implacável com os responsáveis por ela, não tenho dúvidas. O primeiro passo a ser dado agora é o da cessação de hostilidades e o da prestação adequada de auxílio humanitário aos civis de Gaza. Diante da tragédia que testemunhamos todos os dias desde outubro do ano passado, é um passo indispensável, ainda que saibamos que chega com grande atraso. Qualquer solução de longo prazo deve ocorrer no marco de fórmulas já acordadas pelas partes mas nunca implementadas, como é o caso da solução de dois Estados. E na visão do Brasil, o pleno reconhecimento da Palestina como Estado, agora, e sua admissão como membro pleno da ONU, são componentes importantes para uma negociação que possa ter êxito e que seja sustentável. Houve avanços importantes na questão nas últimas semanas, com votações que evidenciaram expressivo apoio à Palestina tanto no Conselho de Segurança quanto na Assembleia Geral da ONU, e já são 146 dos 193 membros da ONU os países que reconhecem o Estado da Palestina. O recente reconhecimento da Palestina como Estado pela Espanha, Noruega e Irlanda foi um avanço relevante, e esperamos que abra caminho para que novos países, especialmente na Europa, sigam esse exemplo.
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Em um mundo em que há uma crescente reação ao estrangeiro, como é para o senhor ver que o Brasil continua a ser um país que recebe as pessoas de outras nações e permite que elas possam construir suas vidas aqui? É um diferencial do nosso país?
Esse traço positivo do Brasil é muitas vezes destacado por meus interlocutores no mundo como fator que credencia o País a ter uma política externa na qual o diálogo e o respeito ao direito internacional se destacam. Nos meus contatos com importantes interlocutores da região, também se ressalta com frequência o papel acolhedor do Brasil em relação a cidadãos e cidadãs de países que enfrentaram e enfrentam turbulências políticas e crises humanitárias. Essa contribuição é muito valorizada, ao lado do reconhecimento pelas posições assumidas pelo Brasil em questões como a do conflito em Gaza e a crise humanitária que se arrasta e se agrava desde outubro do ano passado.
Muitos dos imigrantes árabes que chegaram ao Brasil no começo do século XX, e mais recentemente buscaram refúgio aqui, deixaram suas casas em razão de conflitos. O Brasil tem o desejo, ou mesmo tem o papel, de ser um intermediador de acordos de paz?
O papel de facilitador ou de mediador não é algo que se busque, nenhum país pode ser candidato a mediador. As coisas não funcionam assim na política internacional. Essa escolha sempre depende das partes envolvidas em um determinado conflito. Pela reputação de equilíbrio que construiu ao longo da História, o Brasil é constantemente citado e mesmo solicitado a desempenhar papéis como facilitador, tanto na América Latina quanto em outras regiões. Estamos sempre dispostos a ajudar e a desempenhar um papel construtivo, mas isso sempre depende das partes.
No atual contexto mundial, quem são os árabes para o Brasil em termos de parcerias diplomáticas, trocas comerciais e investimentos?
Os países árabes e os países asiáticos, com destaque para a China e para a ASEAN [Associação das Nações do Sudeste Asiático], constituem uma nova fronteira que já é uma realidade em matéria de parcerias. Os números de crescimento do comércio e dos investimentos com esses novos parceiros nos últimos anos já foram assimilados pelos formuladores de estratégias do governo e do setor privado e se refletem em um diálogo cada vez mais intenso e produtivo. O crescimento dos contatos e das missões comerciais e “road shows” para atração de investimentos, envolvendo os países árabes, chamam a atenção e conferem um grande dinamismo a essas relações.
Quais os próximos passos do governo em relação aos países árabes?
São muitos os passos, começando pelos contatos que manterei nos próximos dias, com diferentes países, em uma rede de relacionamentos que já é muito densa e madura, com forte protagonismo do setor privado. Há expectativa de que a agenda se intensifique no próximo semestre, inclusive com a possibilidade de visitas a países do Golfo.