São Paulo – Esculpir corações no meio de um deserto egípcio durante 20 dias foi a missão de 45 artistas, incluindo a brasileira Catiuscia Dotto. A gaúcha é a única brasileira a ter uma obra sua no Memorial Revivendo a Humanidade, projeto do Fórum Mundial da Juventude. O objetivo do espaço é reunir uma obra com o tema “coração” de cada país do mundo, totalizando 195 esculturas em uma exposição permanente.
Para escolher os escultores, o fórum abre anualmente uma seletiva on-line. Somando a edição de 2018 e a de 2019, que ocorreu em dezembro, já participaram 115 artistas. A organização pretende finalizar o memorial, que fica no Sinai, no Egito, no ano que vem.
O evento, incluindo a estadia dos artistas, é financiado pelo governo egípcio. A ideia é não estabelecer competitividade e sim cooperação entre as pessoas de diferentes nações. Além da convivência entre artistas, o contato também foi próximo com escultores egípcios contratados para dar apoio aos estrangeiros.
“Me sinto privilegiada e muito honrada. Eu sei que num país como o nosso existem artistas de qualidade. Tenho uma responsabilidade muito grande, não só em fazer a escultura, mas em mostrar o que é o nosso país para as pessoas lá. De desconstruir uma visão que eles tinham sobre o Brasil”, declarou ela, que também é professora de arte do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.
Dotto, que tem 15 anos de experiência, desenvolveu sua obra junto aos outros profissionais em um ateliê a céu aberto, montado pela organização a cinco minutos de carro da cidade de Sharm El Sheikh. “Cada escultor vai faz um coração a partir de seu próprio conceito. Eu resolvi levar um pouco do meu trabalho, a partir das formas orgânicas, com elementos femininos e da natureza”, relatou a artista à ANBA.
Formada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, a escultura sempre foi a linguagem de Dotto. Para compor sua obra no Egito ela utilizou resina poliéster, fibra de vidro e levou moldes de silicone de sementes brasileiras, dentre as quais escolheu as de pinhão.
Quando encerrou o trabalho no evento, a artista estendeu sua viagem. “Conheci o país através de perspectiva não turística. Fui ao Cairo e Alexandria com os artistas egípcios com quem estabeleci amizade. Eu já tinha uma imagem bastante desconstruída com relação ao que vemos na mídia, mas me surpreendi ainda mais. Fiquei encantada com a cultura árabe e islâmica e voltei com materiais para estudar. Na minha formação academia, praticamente não estudamos a arte islâmica”, afirmou.
“Provavelmente, isso está vinculado a um projeto político mesmo de preconceito, que sabemos que alguns países têm interesse em implementar. Essa vinculação que a mídia e os Estados Unidos fazem entre o mundo árabe e o terrorismo. Já levantava a bandeira para desconstruir isso e, conhecendo as pessoas, eu voltei tendo isso como uma meta, como educadora e artista”, acrescentou.
O diálogo com os egípcios, que a receberam inclusive na noite de Réveillon, trouxe reflexões sobre religião e liberdade de escolha para a artista e serviu também para que ela partilhasse sua história com eles. “Sobre o Brasil, tem aquele estereótipo de carnaval, praias. Como vivo no Sul, tenho que explicar que faz frio aqui, que tomamos chimarrão, essa realidade do Brasil diverso. Gosto de levar imagens e falar dos povos originários. Tentei comentar bastante da nossa relação com a África e com o que ocorreu na época da escravidão, das medidas de reparação histórica que vínhamos tomando nos últimos anos”, apontou.
Para Dotto, ter sua obra no memorial é um ato de resistência. “Nosso país não valoriza a produção artística. Para mim, participar desses eventos não é só ir fazer escultura, mas representar o Brasil, falar de uma sociedade e estar agindo”, declarou a escultora.
De volta ao Brasil, Dotto quer fazer valer a experiência que teve no país. “Comprei um monte de material sobre islamismo e arte islâmica e a minha ideia agora é reconstruir esse pensamento e essa imagem do Egito. Trabalhar junto aos meus alunos para mudar essa péssima imagem que a mídia de massa passa”, revelou a escultora e professora gaúcha.