São Paulo – Aos poucos, o perfil do comércio da região da Rua 25 de Março, no Centro de São Paulo, está mudando: de apenas atacado para atacado e varejo, de apenas físico para físico e digital. Endereço que ficou famoso por abrigar imigrantes árabes no começo dos anos 1900 agora tem brasileiros, chineses, italianos e empresários de outros países. Muitos descendentes de sírios e libaneses deixaram “a 25”, como se referem à região, mas ainda há comerciantes que tiram dali o sustento de toda família.
A Rua 25 de Março leva o nome em referência à primeira Constituição do Brasil, promulgada em 25 de março de 1824. Mas a Câmara dos Deputados determinou a data como o Dia Nacional da Comunidade Árabe pelo fato de muitos imigrantes do Oriente Médio terem se estabelecido naquela região para viver e trabalhar.
Representante da terceira geração do Rei do Armarinho, loja que fica na Rua Cavalheiro Basílio Jafet, Pierre Sarruf narra a história de seu avô, Afif, como a de tantos outros imigrantes da Síria e do Líbano que se estabeleceram “na 25”.
Os dois irmãos mais velhos de Afif chegaram ao Brasil 1910. Trabalharam como mascates pelo interior de São Paulo até abrirem loja na região da 25 de março. Trouxeram, então, os irmãos mais novos, entre eles Afif. Quando já estavam mais velhos, Afif assumiu o comando do negócio em arranjos societários que se renovaram ao longo dos anos à medida que a empresa se expandia. Dos quatro filhos de Afif, Sérgio e Gilberto, pai de Pierre, continuaram no negócio.
Hoje, a Rei do Armarinho também oferece serviços: faz cursos com profissionais que criam peças de roupa em tricô e crochê. Nas vendas, fitas, bordados, fios para crochê e tricô são alguns dos “carros-chefes” da loja. A linha natalina, diz Pierre, é um diferencial. No final do ano, a loja inaugura um showroom com as novidades para a época do ano e ali recebe decoradores que dão dicas para os consumidores.
“Fizemos algumas reduções devido ao superaquecimento do mercado imobiliário da região com a vinda dos chineses para cá nos anos 1990, 2000. Teve pressão nos aluguéis, então acabamos reduzindo espaço físico e criamos alternativas de venda por atacado através de representantes comerciais. Nos atualizamos construindo uma loja virtual bem estruturada para o cliente que não pode vir aqui”, diz Pierre, de 48 anos, hoje o CEO de uma empresa de 99 anos, que ele administra com o irmão, Philipe, o CFO, ou diretor financeiro, de 43 anos.
Os arranjos societários que ocorreram no Rei do Armarinho se repetem também em outras lojas. Os motivos, apontam os comerciantes, vão desde um custo elevado para atuar naquela região até a saída das gerações mais novas dos negócios rumo a outras profissões.
Pais de Elias Ambar, de 71 anos, Georges e Linda chegaram ao Brasil em 1948 vindos de Kfar Meshki, cidade ao sul de Beirute, no Líbano. O primeiro filho, Roberto, hoje com 75 anos, nasceu em 1949. Em seguida vieram Mari, de 73 anos, Elias e João, de 67. Tão logo se acomodou no Brasil, Georges e seus primos que aqui viviam saíram para mascatear pelo interior de São Paulo. Mari nasceu em Marília, cidade do interior do estado em que a família tentou viver, mas Georges desistiu. “Acho que a vibe [o interesse] dele era outra. Ele falou: ‘Eu vou para São Paulo’”, diz Elias, que é paulistano, assim como Roberto e João.
Elias recupera na memória, às vezes consultando o irmão Roberto, os fatos que levaram a Armarinho Ambar até os dias de hoje, a uma trajetória que se confunde com a própria história da região da 25 de março. Primeiro, o pai de Elias se estabeleceu em um imóvel na Rua Carlos de Souza Nazaré, uma região que alagava com frequência. Mudaram a loja para a Rua Cavalheiro Basílio Jafet até que, em 1967, foram para a Rua 25 de Março, onde estão até hoje.
“Até mais ou menos 1970, trabalhávamos fortemente no atacado. Praticamente não existia varejo. Mas houve um evento que, em princípio, parecia ser uma desgraça, que foi uma enchente [por volta de 1967]. Meu pai tinha acabado de adquirir a loja, tinha dívidas. Perdeu tudo. Limpamos a loja, tentamos reaproveitar o que podia. Aí correu no noticiário que aqui estava liquidando a mercadoria a preço de banana”, recorda Elias sobre uma promoção que o comércio local afetado pela inundação promoveu para vender o estoque.
“Com isso, o povo foi se acostumando, aprendeu a vir para a 25 de Março. E com a evolução do mercado, a 25 foi abrindo espaço para o varejo”, diz. Além da enchente tipicamente paulistana, os altos e baixos da economia brasileira contribuíram para mais mudanças no comércio da região. A inflação dos anos 80, a abertura aos produtos importados no começo dos anos 1990 e a introdução do plano Real, em 1994, levaram à diversificação de produtos, negócios e lojistas.
Até que a internet mudou tudo. “Tudo é tudo. Antigamente a loja era praticamente atacado, 90% atacado. Depois começou a virar atacarejo, vender mais varejo e esse atacado tem um apelo um pouco diferente”. Quem diz que a internet “mudou tudo” é Jorge Dib, diretor do Depósito de Meias São Jorge. A empresa foi criada pelo pai, Salvador, e o tio, Feiad, que ainda crianças começaram a mascatear nas feiras de São Paulo até serem contratados, juntos, para trabalhar em uma loja. Saíram desta empresa e, novamente juntos, abriram o Depósito de Meias São Jorge.
Os árabes da Rua 25 de Março e a transformação digital
Entre todas as mudanças pelas quais passou, diz Dib, a internet foi aquela que obrigou a empresa a se reinventar. “A ideia era abrir outras lojas pelo Brasil, fazer multimarcas. Mas fomos convencidos pelos fundadores a não fazer isso. Eles tinham uma outra cabeça, de que isso não daria certo. A gente foi para um outro segmento, que hoje detém a maior parte do faturamento da empresa, que é o digital. A gente atua no digital com força”, afirma, sem, contudo, pensar em se desfazer dos dois endereços que a empresa tem na Rua 25 de Março.
“A vida é outra. Você tem uma capilaridade, uma rede para pegar o Brasil todo, a gente vai para o Brasil todo, tanto atacado quanto varejo. A gente consegue fazer 14 marketplaces”, diz ele em referência aos endereços digitais onde produtos comprados da sua empresa podem ser encontrados pelas mãos de outros comerciantes.
Além de empresários da região, Dib e Elias são diretores da União dos Lojistas da 25 de Março e Adjacências (Univinco), que representa o comércio local no diálogo com a sociedade civil, autoridades e empresas. Um dos desafios atuais da instituição é cobrar uma solução para as frequentes interrupções no fornecimento de energia elétrica. Outro desafio é buscar formas de ampliar a segurança de lojistas e clientes. E é por meio da Univinco que os comerciantes avaliam maneiras de atrair para lá o público que viaja a São Paulo para participar de feiras e eventos.
O perímetro alcançado pela Univinco contempla 17 ruas e avenidas e 3.500 lojas, das quais 590 no chão da rua e o restante em prédios comerciais. Cerca de 60% dos lojistas são associados à Univinco.
“É uma parte da cidade que está entre o Mercadão [Mercado Municipal de São Paulo] e o Marco Zero [na Praça da Sé]. Tem um monte de coisa acontecendo aqui em cima na parte cultural, onde a gente está no meio, junto com o Mercadão”, diz Dib sobre a localização da 25 de março. “Tem vários restaurantes árabes aqui na região, pode ser que alguma coisa precise ser divulgada. Tem umas gerações que ainda não sabem direito o que acontece aqui”, diz.
Entra geração, sai geração, esses descendentes de imigrantes árabes continuam a obter o sustento e expandir seus negócios ali, ao lado de diversos comerciantes de uma grande variedade de produtos e de diversas origens. Não pensam em sair. Ao contrário: como mostraram Dib, Sarruf e Ambar, querem ficar.
“Por ser uma empresa de 99 anos, temos amor e carinho pelo que foi construído pelos nossos antecessores. Nós que estamos na gestão atual do Rei do Armarinho entendemos que o esforço dos nossos familiares foi muito grande. E a gente luta pela preservação, atualização do negócio. Apesar de existir muita concorrência no mercado, aqui é o nosso lugar”, diz Sarruf.
A família Ambar, assim como Sarruf e Dib, também investe nos negócios digitais e tira parte do faturamento da empresa dali. Quem cuida desta parte do negócio é Guilherme Ambar, de 45 anos, filho de Roberto. Todos, com exceção da irmã Mari, estão no dia a dia do Armarinho Ambar. E pretendem continuar , diz Elias: “Pensar em ir embora da 25 de março…decididamente não. Porque é a vida da gente aqui, existe uma ligação muito forte. Nós nascemos aqui na região. Se você perguntar para mim se se eu pudesse nascer de novo escolheria não vir para a 25? Não. Aconteceram tantas coisas boas…”
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