São Paulo – Alceu Valença, Elba Ramalho e os repentistas. Some isso a instrumentos musicais árabes, uma cantora brasileira e um clima parisiense. É dessa conta de misturas que vem boa parte da inspiração do novo trabalho de Caro Ferrer, carioca radicada em Paris (França). “Sempre senti influência árabe na música nordestina. Os mouros estiveram na Península Ibérica e, claro, quando os europeus descobriram o Brasil essa presença que já estava em Portugal chegou aqui”, contou a cantora em entrevista à ANBA.
Para ela, que lançou no último mês de novembro seu CD “Brisa Mourisca”, os traços árabes estão na maneira de interpretar de repentistas e cantores nordestinos. “Alceu Valença, por quem tenho enorme admiração e é um dos meus preferidos, eu considero o mais mouro dos compositores nordestinos. Zé Ramalho tem uma pegada bem árabe na maneira de cantar e na viola que toca. Estava na hora de alguém falar disso”, declarou a musicista.
O vibrato, técnica de oscilação de corda de instrumento musical, que os nordestinos utilizam na própria voz é, para Caro, característica árabe. “Quando você escuta Elba Ramalho e outros cantores, eles têm um vibrato que na música do Sudeste não tem. Outro exemplo é o Zé Ramalho, que fica entre o cantar e o falar. O repente é completamente árabe de origem”, argumentou.
A sonoridade dos árabes
Nascida no Rio de Janeiro, Caro morou em Natal (RN) e em Fortaleza (CE), e trabalha com ritmos nordestinos deste seu primeiro álbum. “Todos os meus discos têm pelo menos um baião, um samba, um coco. Quando chegou a hora de pensar em um quarto disco, resolvi trabalhar unicamente com ritmos nordestinos. Sou carioca, mas não acho justo como musicista que as pessoas fiquem com a ideia de que só existe isso no Brasil”, ponderou.
Junto à vontade de mergulhar na cultura nordestina, vieram as brisas mouras, que ela espalha em dez canções. “Decidi sonorizar o disco com instrumentos árabes. É a primeira vez que faço isso. Todas as letras e melodias são minhas”, diz. Entre os músicos que acompanham a cantora, mais diversidade: Pedro Barrios é colombiano, Rodrigo Samico é pernambucano, e Lameck, um angolano quase brasileiro, segundo ela. Já o músico francês Hervé Morisot atua com ela desde 2010, e nesse projeto toca guitarra, bandurria (foto acima), espécie de alaúde da antiga região persa, e violões de seis e sete cordas.
Para chegar aos sons árabes, a artista optou por ornamentar a base de percussão nordestina (formada por zabumba, tambor d’água, caixas e congas) com os instrumentos estrangeiros. Entre eles, a darbuka (derbake), mais utilizada na percussão no Norte da África, segundo Caro, e também as reqqes e carcabous presentes na percussão árabe.
O disco traz sons mouros para ritmos brasileiros como cocos, cirandas e maracatus. “Eu queria a darbuka de qualquer maneira. Queria os daffs. Os percussionistas trouxeram os reqs e outros tipos de pandeiros que eu não conhecia”, explicou a artista, que também foi produtora do CD. No estudo para gerar o álbum, outras inspirações também foram músicos como Amar Chaoui, e Zé Luís Nascimento, brasileiro especializado em música árabe.
Povos migrantes
O álbum “Brisa Mourisca” foi pensado, gravado e mixado inteiramente em Paris e traz mais do que estudo musical. A cantora é também pesquisadora e buscou entender a fundo como as culturas brasileira e árabe se ligam. “Deveríamos aprender na escola um pouco mais das nossas origens. Temos muita influência desses povos do deserto”, afirmou.
A curiosidade pelo que não aprendeu na infância se tornou Mestrado em Literatura e Civilização Brasileira na Universidade Paris Ouest – Nanterre. “Pesquisei sobre música nordestina e a construção do Nordeste. Sobre como tudo ali foi se identificando e virando uma região que passou a ter esse nome. A região tem suas características e uma dessas é a forte influência moura”, destacou Caro.
Entre as faixas do disco, há canções que narram desde as dificuldades enfrentadas pelo trabalhador até a história de duas pessoas que se separam. O último tema é caro à artista. “É sobre a distância física. Uma das coisas que me levou ao árabe, foi o fato de nordestino ser migrante. São povos que migram e teve uma onda fortíssima de migração da Síria na França”, afirmou ela, que viu semelhanças entre os movimentos em todo mundo e em seu país de origem nos últimos anos.
“No Brasil, os preconceitos que sempre existiram com os nordestinos afloraram muito durante o período de manifestações para tirar a presidente democraticamente eleita (Dilma Rousseff, que sofreu impeachment em 2016). Eu vi o fascismo saindo do armário. Um ódio pelo pobre, ou pelo menos rico, por aquele pedaço ali do Brasil. Projetos como Bolsa Família (de transferência de renda) e as escolas técnicas aconteceram no Brasil inteiro, mas não sei porque só se falava do Nordeste. Vi a volta do preconceito também no francês do interior, principalmente. Existe uma onda no mundo inteiro, nos Estados Unidos, na Austrália, e no Brasil, que acaba de ganhar um governo de extrema de direita”, declarou.
Como forma de se colocar sobre a questão, Caro escolheu mesclar as duas culturas. “No meio das minhas pesquisas surgiram esses preconceitos. Resolvi, juntar tudo e mostrar o brasileiro com árabe. Mostrar as raízes mouras do Nordeste e homenagear esses povos”, conta a compositora.
Próximas brisas
Lançado em novembro de 2018, o disco rendeu uma turnê que segue pela França neste ano. No Brasil, no entanto, a cantora ainda não conseguiu trazer o trabalho ou fazer a distribuição. “Gostaria muito de apresentar o disco no País. Estou à procura de produtor e editor para que isso possa acontecer, e o brasileiro conhecer o trabalho. Meu público, hoje, é 90% francês”, conta ela, que mora há 18 anos em Paris e segue compondo apenas em português.
Depois da estreia com um CD que traz os sons mouros, a musicista já prepara próximas empreitadas. “Já estou compondo outros baiões e cocos pensando na instrumentalização árabe. Estou muito feliz com o resultado. Vou continuar trabalhando nessa linha. A segunda edição desse projeto já está em andamento”, concluiu a cantora.