Isaura Daniel
São Paulo – Eles eram beduínos, habitavam a Península Arábica, atravessavam desertos, guerreavam juntamente com suas tribos. Além disso, faziam poesia. Os árabes beduínos do século seis eram poetas e um carioca chamado Alberto Mussa resolveu colocar os seus versos ao alcance dos brasileiros. O autor publicou, no começo deste ano, pela editora Record, o livro Os Poemas Suspensos, que traz a tradução de dez poemas dos dez maiores poetas árabes do período pré-islâmico, anterior ao surgimento da religião muçulmana.
A chegada em um acampamento onde a mulher amada esteve e o lamento ao não encontrá-la no local, a lembrança da sua beleza, a comparação das propriedades femininas com as de animais como cabritas e vacas, apreciados pelos beduínos, que eram pastores, fazem parte dos poemas. Também a travessia no deserto atrás da mulher e a exaltação das próprias virtudes de beduíno na guerra formam o conteúdo dos versos do livro. De acordo com Mussa, a descoberta de um poeta em uma tribo, na época, era um motivo de glória.
"Eles acreditavam que os poetas tinham contato com os gênios, com seres sobrenaturais", explica o carioca. Os poemas foram transmitidos de forma oral e só chegaram a ser registrados, pela escrita, no século oito. Os dez traduzidos por Mussa, conta a lenda, foram bordados em mantos em púrpura e chegaram a ser pendurados na Caaba, local que, segundo a religião islâmica, foi erguido pelo profeta Abraão para adoração, em Meca, cidade sagrada saudita. Os beduínos autores dos dez poemas viveram na Península Arábica, desde o Iêmen, ao sul, até a Síria.
O tradutor
Mussa, formado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é descendente de libaneses. O interesse pela poesia árabe começou quando ele leu, na versão em inglês e francês, o livro Os Poemas Suspensos, cujo nome original em árabe é Al-Muallaqat. "Fiquei muito impressionado, nunca tinha lido nada parecido em poesia", afirma. Apesar da descendência, Mussa não chegou a aprender o idioma árabe em casa. "Comecei a estudar árabe para ler estes poemas no original", conta.
O avô do carioca, Nagib David Mussa, que nasceu no Líbano e veio para o Brasil em 1920, tinha uma grande biblioteca com publicações árabes em sua casa. O autor chegou a começar a aprender o árabe, quando era ainda bem criança e passou uma temporada na casa dos avós, mas os seus pais não o incentivaram porque ficaram receosos de que o outro idioma atrapalhasse o aprendizado do português. O avô de Mussa era um amante da literatura apesar de ter seguido a carreira de comerciante no Brasil.
A tradução de Os Poemas Suspensos foi feita por Mussa entre os anos de 1996 e 2004. Ele começou o trabalho como um exercício pessoal de aprendizado, mas foi incentivado por um professor da UFRJ a levar o projeto adiante e tentar publicá-lo. Foi o que aconteceu neste ano.
Enquanto esteve traduzindo a obra, porém, Mussa também escreveu um romance ambientado no mesmo local e contexto dos poemas. O romance, chamado O Enigma de Qaf, conta a história de um poeta que se apaixona por uma mulher da qual não viu o rosto inteiro, apenas os olhos.
O livro, que tem 28 capítulos, o mesmo número de letras do alfabeto árabe, traz também a biografia de 13 poetas árabes e contos da mitologia pré-islâmica criados por Mussa. A obra foi publicada em 2004 e recebeu prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Casa de Las Américas, organismo de fomento à literatura. O livro também foi considerado, em um ranking do jornal O Globo, um dos melhores romances brasileiros do ano de 2004. Até agora foram vendidos quase três mil exemplares.
Os negros
Antes de entrar na temática árabe, os estudos e escritos de Mussa estavam concentrados na cultura africana. O autor fez mestrado na UFRJ sobre o papel das línguas africanas na história do português do Brasil. O primeiro livro publicado pelo carioca, em 1997, chamado Elegbara, é de contos ambientados no universo afro-brasileiro. As histórias se passam na África e no Brasil nos séculos 17,18 e 19 e começo do século 20. Um é da Pré-história. Mussa também tem descendência índia e negra, além de portuguesa, em função de sua mãe, filha de alagoanos.
O segundo livro de Mussa é o romance O Trono da Minha Jinga, publicado em 1999, sobre a história de uma irmandade secreta de escravos negros no Brasil que era movida por idéias de uma rainha angolana chamada Jinga, que de fato existiu. Com um tio compositor de escolas de samba e a influência da mãe, Mussa acabou desde cedo freqüentando grupos de capoeira, centros de umbanda e candomblé e rodas de samba, redutos da cultura negra no Brasil.
Grande parte dos contos e romances do autor tem histórias que se passam em outras épocas da história e em locais distantes do Brasil. Isso só foi possível por Mussa ser leitor assíduo de livros. "Escrevo sobre as coisas que eu leio. Culturas não ocidentais me interessam." Mussa será um dos professores do curso "Panorama da Cultura Árabe" que o Instituto da Cultura Árabe (Icarabe) vai promover a partir de 18 de setembro na Câmara de Comércio Árabe Brasileira, em São Paulo.