São Paulo – Veículos movidos a combustíveis fósseis, queima de resíduos, uso de fertilizantes químicos, pecuária e outras atividades que compõem a maneira como a sociedade vive e se move economicamente estão entre as responsáveis por lançar na atmosfera gases com efeito de estufa. Com temperaturas mais altas, há alterações nos padrões de chuvas, que são irregulares e excessivas, secas cada vez mais frequentes e acentuadas, tempestades e inundações que quebram safras, reduzem a produção e elevam o preço dos alimentos. Ou seja, a maneira como o mundo produz comida para se alimentar colaborou com o aumento da temperatura do planeta. E, por sua vez, a mudança climática atinge e afetará ainda mais a forma como a sociedade produz alimentos. O que vamos fazer?
Mônica Sartori de Camargo, pesquisadora científica da APTA Regional de Piracicaba, instituição de pesquisa da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), vinculada à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, reconhece que as temperaturas mais altas e as chuvas irregulares são um desafio para a agricultura. Doutora na área de Solos e Nutrição, Camargo diz que é importante manter áreas de proteção permanente em torno das fazendas, e defende que com planejamento e tecnologias geradas a partir de novas pesquisas é possível driblar as intempéries e não ser surpreendido por elas. “Manejar adequadamente o solo, oferecendo nutrientes em quantidades balanceadas para que a planta cresça com equilíbrio, escolher espécies adequadas ao local, fazer curvas de nível e terraços na agricultura são formas de proteger o solo”, explica, “e quando você protege o solo, você também protege a água, reduzindo o assoreamento dos rios.”
É justamente a falta de água o principal impacto das mudanças climáticas nas plantações, que no jargão científico é chamado de déficit hídrico. “Com o calor, as plantas precisam de mais água para crescer e produzir. Somado a isso, há uma projeção de redução das chuvas em várias regiões do País, diminuindo a disponibilidade desse recurso. Precisamos nos preparar e adaptar nossos sistemas de produção a essa nova condição com práticas que ajudam a manter a água no solo e plantas mais resilientes”, diz o engenheiro florestal e pesquisador Giampaolo Pellegrino, presidente do Portfólio de Mudanças Climáticas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e doutor em Água e Solo.
Um exemplo de planta resiliente é a mandioca, cultura escolhida pela FAO como o alimento do século 21. As pesquisas do doutor em Ciências Agrárias, Jailson Lopes Cruz, mostram que a planta se aproveita das altas concentrações de gás carbônico (CO2) na atmosfera para aliviar os efeitos da seca. Isso implica que há a possibilidade de incluir o cultivo da mandioca em novos territórios, como no semiárido, aumentando a oferta do produto. Camargo vê oportunidade de expandir a produção, mesmo com a crise climática, em terras agricultáveis no continente africano e no Brasil: “o clima favorável ao longo do ano para grande parte das culturas agrícolas pode sanar a produção de alimentos”.
Para Juliana Tângari, diretora do Instituto Comida do Amanhã, não há dúvidas de que o cenário é preocupante e defende como estratégia viável “produzir comida em sistemas agroflorestais, sistemas agroecológicos que priorizem alimentos nativos ou adaptados ao clima local”. Também devemos apostar nos processos de encurtamento de cadeias e aproximar a produção de alimentos – principalmente os mais perecíveis – de onde está o consumidor, ou seja, dos centros urbanos, onde a maior parte da comida é consumida”.
Pellegrino também destaca outras técnicas e sistemas sustentáveis, como a integração lavoura-pecuária-floresta. “São técnicas e práticas que já existem, já foram testadas e promovem a diversificação e a intensificação da produção, a melhoria de renda e a qualidade de vida do produtor, além de reduzir as emissões e aumentar a resiliência do sistema.” Segundo ele, os pesquisadores estudam formas de aumentar a produtividade das culturas, encontrando soluções para mitigar os efeitos do aquecimento global, reduzindo emissões e adaptando culturas para os cenários futuros. “Não fazemos previsões, fazemos projeções a partir de cenários de desenvolvimento plausíveis, isto é, o que pode vir a acontecer, e com bases nelas analisamos riscos e tendências.”
“Pesquisas demonstram que não é necessário desmatar florestas para aumentar a produtividade de plantio, pois com técnicas, estudos e pesquisas conseguimos produzir muito mais num mesmo espaço de terra”, diz Pellegrino com entusiasmo.
O pesquisador reconhece que há uma certa resistência quando o assunto é mudar uma cultura. Como incentivo para que isso aconteça, ele cita o Programa ABC, uma linha de crédito criada em 2010 para agricultura de baixa emissão de carbono, com taxas de juro diferenciadas destinadas aos agricultores que aplicarem iniciativas e utilizarem métodos de produção que ajudem a diminuir as emissões de gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, aumentar a adaptação à mudança climática. Com o financiamento agrícola, o plano inclui estratégias para compartilhar conhecimento tecnológico, conduzir pesquisas e inovações, regularizar questões fundiária e ambiental, campanhas publicitárias informativas e capacitação de técnicos e produtores.
O pesquisador também cita o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC), uma ferramenta importante na política agrícola e na administração de riscos ligados à agricultura. Seu propósito é reduzir os impactos advindos de condições climáticas adversas, possibilitando a cada município identificar o período mais propício para o cultivo de diferentes safras, levando em consideração variados tipos de solo e ciclos de crescimento das plantas. Esta abordagem, de fácil compreensão e aplicação, é acessível tanto para os agricultores quanto para instituições financeiras e demais usuários envolvidos no setor.
Estima-se que existam em torno de 390 mil tipos de plantas em todo o mundo. No Brasil, são aproximadamente 46 mil. Apesar dessa diversidade, ao longo da história, a humanidade utilizou apenas cerca de mil como fonte de alimento. Atualmente, são cultivadas mais ou menos 300 espécies para diversos propósitos, como alimentação, medicina, construção e outras utilidades. Dessas, somente 15 variedades (arroz, trigo, milho, soja, sorgo, cevada, cana-de-açúcar, beterraba, feijão, amendoim, batata, batata-doce, mandioca, coco e banana) correspondem a 90% da dieta alimentar global.
Juliana afirma que esse é um ponto crucial: “é o que chamamos de monotonia alimentar. A monotonia da forma como consumimos alimentos está relacionada à monotonia com a qual produzimos alimentos. O desastre de biodiversidade é incrível, sem falar nas dependências, na concentração de mercados, nas distorções dos verdadeiros custos (efeitos colaterais) dos nossos sistemas agroalimentares”.
Pensando no Brasil, Tângari afirma que a produção nacional ainda é diversificada ou diversificável e que há muitas espécies nativas pouco consumidas. “Temos com certeza espaço para reverter esse quadro. Temos também que passar por um processo de reeducação alimentar, reeducação nutricional, para entendermos que comer mais vegetais, vegetais do Brasil, será uma boa estratégia de resiliência. O alto consumo de ultraprocessados, além de gerar uma pandemia de obesidade e Doenças Crônicas Não Transmissíveis, está fazendo mal ao planeta.”
“A gente precisa dar valor à produção de alimentos – ainda que em menor escala e em produtos mais restritos – nas cidades, no meio urbano. Aos quintais que podem e devem ser produtivos de comida e de segurança alimentar”, afirma Tângari. “Não vai existir uma solução única; precisamos aliar diversas estratégias e ter coerência nessas estratégias: elas precisam ser alinhadas com o reconhecimento de que a alimentação saudável é um direito universal, e com o fato de que a crise climática é causa e consequência da forma como nos alimentamos.”
Na opinião de Camargo, não vai faltar comida: “Acho que a questão da fome está mais relacionada à distribuição de alimentos e ao desperdício, do que a quantidade do que é produzido.” Pellegrino confia que há motivos para ser otimista: “Estamos encontrando maneiras de nos adaptar às mudanças. Mas precisamos, sim, de um grande esforço para que a temperatura do planeta pare de subir.”
Reportagem de Paula Medeiros, especial para a ANBA