São Paulo – Pagamentos a prestação, receitas gastronômicas, o jeito de fazer carnaval, novas palavras e negócios, muitos negócios, são algumas das heranças que os árabes trouxeram para o Brasil desde a chegada dos primeiros imigrantes ao País. Quando isso ocorreu é desconhecido, mas a esquadra com as 13 embarcações de Pedro Álvares Cabral contava com tripulantes de origem árabe já em 1500. Desde os seus primeiros anos, o Brasil teve a presença e influência árabe na formação da sua sociedade, mas foi a partir da segunda metade do século 19 que ela se consolidou com um grande fluxo de sírios e libaneses.
Agora, o número de originários e descendentes de países árabes presentes no Brasil será detalhado em pesquisa inédita que será divulgada pela Câmara de Comércio Árabe Brasileira na próxima quarta-feira (22), em um evento virtual, que também servirá para marcar os 68 anos de fundação da instituição.
Os pesquisadores não determinam uma data para a chegada dos primeiros árabes ao Brasil, mas são unânimes em lembrar que antes de 1850 já havia a difusão da cultura e do idioma mesmo entre os escravos. E, depois, a partir de 1880, essa presença se consolidou. Na foto acima, a família Abrão Dib, em 1922, nos seus primeiros tempos no Brasil.
De acordo com o professor de Língua e Cultura Árabes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Baptista de Medeiros Vargens, a influência árabe no Brasil deve ser estendida também à islâmica, pois, ainda na primeira metade do século 19, os escravos malês já eram traficados para a Bahia. Lá, se rebelaram em uma grande revolta em 1835, que foi combatida pelo governo local. Os abadás que usavam e os versos do Alcorão que guardavam junto a suas vestimentas, no entanto, se tornaram evidências da sua religião e cultura. “É difícil determinar o seu país de origem porque muitos escravos eram embarcados a partir de um único porto, que não necessariamente era o porto de onde eles viviam”, observa Vargens.
A partir de 1840 guerras e conflitos na região de Líbano e Síria levaram à fuga de diversos habitantes. O sonho e destino de muitos desses emigrantes eram os Estados Unidos, a América promissora, bem como alguns lugares da América do Sul, como a Argentina. “O Brasil não era seu objetivo principal, no entanto alguns acabavam por optar pelo Brasil por também ser um lugar promissor na América e outros vinham para cá até por engano”, observa a professora de História Árabe na Universidade de São Paulo (USP), Arlene Clemesha.
Diretor do Centro de Estudos e Culturas da América Latina na Universidade Saint Esprit de Kaslik (Usek), no Líbano, o pesquisador e historiador Roberto Khatlab observa que o fluxo de árabes para o Brasil se intensificou a partir de 1880, após duas visitas do imperador D. Pedro II à África e ao Oriente Médio. Embora as visitas do imperador não tenham sido feitas em caráter oficial, sua presença no Egito, em 1871, e no Egito, Síria, Líbano, Palestina e Turquia, em 1876, acabou por apresentar um novo país aos habitantes daquela parte do globo.
Textos e artigos sobre o Brasil chegaram a ser publicados em jornais em árabe. D. Pedro II aprendeu a ler em árabe e se interessou pela cultura local. Mais do que isso, apresentou uma nação com enorme quantidade de terras férteis, algo que foi explorado pelos colonos europeus, e que precisava de comerciantes. “D. Pedro II era um homem de visão de futuro. Ele divulgava na Europa que o Brasil precisava desenvolver sua agricultura. Mas também queria pessoas que fizessem comércio, que fizessem as mercadorias circularem pelo território. E sabia que os árabes faziam isso muito bem”, afirma Khatlab.
Essa presença árabe foi fundamental para o desenvolvimento do comércio no Brasil. De acordo com Khatlab, muitos dos libaneses que emigraram para o promissor país das Américas levaram para lá algo que sabiam fazer muito bem entre os vilarejos libaneses: vender. Sabiam também conversar. Por isso, quando iam de uma lavoura a outra no interior do estado de São Paulo ou em outras do Brasil levavam não apenas seus armarinhos com tecidos, ferramentas e objetos de uso diário, como também notícias e informação de um lugar para o outro.
Arlene Clemesha observa que, para os colonos europeus que trabalhavam no campo, comprar dos árabes era um excelente negócio: “Naquela época, atrelava-se à mão de obra ainda aos costumes da escravidão. Os colonos endividavam-se nas lojas da fazenda, que pertenciam aos donos da fazenda que os empregavam. Não era bom para eles. Para todos, era melhor comprar dos árabes porque podiam comprar objetos em condições melhores”, diz.
“Ao trabalhar como mascates, os imigrantes árabes passaram a ter contato com a população local, com a língua portuguesa. Depois que estabeleciam um pequeno comércio, traziam seus parentes. Essa atividade econômica os fez participar de todas as classes sociais brasileiras, de uma grande parte da vida econômica, mas também de outras áreas, como o Carnaval, o futebol, a comunhão com a cultura popular”, observa Vargens lembrando de famílias de origem árabe que comandam escolas de samba em São Paulo e no Rio de Janeiro. “Um dos maiores compositores de samba da Mangueira de todos os tempos é de origem árabe”, diz, em referência à tradicional agremiação carioca e a Hélio Turco.
Diferentemente dos imigrantes italianos, que em muitos casos vieram ao Brasil em razão de acordos internacionais e já chegavam ao País empregados, os árabes vieram por iniciativa própria. Foram beneficiados, de acordo com Khatlab, por um acordo celebrado em 1858 entre o Brasil e o Império Turco-Otomano. Este acordo permitia que o portador do passaporte turco-otomano, que era o passaporte emitido para sírios e libaneses na época, pudesse emigrar e trabalhar legalmente no Brasil sem a necessidade de visto.
Por não terem laços nem vínculos com fazendeiros ou governos, como ocorreu com os europeus, os árabes puderam estabelecer seu próprio ofício como forma de subsistência, o que foi fundamental para prosperarem na nova terra. Depois de mascates, se tornaram comerciantes e atuaram como importadores, afinal tinham parentes e contatos na Europa e na América. Introduziram o pagamento a prestações, foram industriais, administradores de restaurantes, de empresas, de hospitais, médicos. Em todo o Brasil, os árabes e seus descendentes fundaram associações e clubes. Se aventuraram na política e na economia. Colocaram a mão na massa e, a partir da sua tradição culinária, enriqueceram a mesa brasileira. Trouxeram música, deram palavras e contribuíram com a Língua Portuguesa.
Os fluxos da chegada
“A imigração árabe ao Brasil viveu diversos momentos. Entre 1880 e 1910 o Brasil recebeu muitos sírios e libaneses em razão dos conflitos decorrentes da presença do Império Turco-Otomano, que perseguia os cristãos, e de conflitos originários na falta de terras férteis. Depois, o fluxo de imigrantes passou a viver altos e baixos durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e houve uma retomada após a Segunda Guerra. Esses fluxos levaram também com que brasileiros fossem para os países árabes”, observa Kathlab.
Mesmo depois das duas grandes guerras, os árabes continuaram a buscar no Brasil seu novo lar. Foi assim durante a Guerra Civil libanesa, entre 1975 e 1990, depois com palestinos no começo dos anos 2000, e, desde o conflito de 2011, com os sírios. No caso mais recente, porém, não se trata de imigrantes, mas de refugiados. Ou seja, pessoas que buscaram outro local para viver em razão de conflitos em seu território de origem. De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 3.326 sírios foram aceitos como refugiados no Brasil entre 2011 e 2018, o equivalente a 40% do total de refúgios concedidos pelo Brasil no período. No mesmo período, 350 palestinos, ou 4% do total, receberam refúgio no Brasil, além de 110 iraquianos, ou 1% do total.
Muitos desses refugiados optaram por viver no Brasil porque o País ofereceu condições para que chegassem sem documentos, por meio de uma portaria editada pela ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016). Essa portaria permitia que os solicitantes de refúgio entrassem no Brasil até que obtivessem, no País, documentos e a aceitação do seu pedido.
Se os árabes deixaram uma saborosa herança gastronômica, além de métodos de negociação e influência cultural por aqui, o Brasil também deixa sua marca em terras sírias e libanesas: “Alguns imigrantes ainda enviam dinheiro para seus familiares no Líbano, o que ajudou a desenvolver alguns vilarejos. Além disso, há regiões que tomam chimarrão. E pastel, coxinha e pão de queijo são parte do cardápio nas cidades do Vale do Bekaa, graças a um grupo de brasileiras que imigrou para lá. O Líbano também incorporou ao seu cardápio e ao seu dia a dia costumes brasileiros”, afirma Kathlab.
*Reportagem de Marcos Carrieri, especial para a ANBA