Marco Bahé, enviado especial
Vale do São Francisco – Já passam das 13h e o sol castiga a paisagem. Às margens da BR-232, no trecho em que a rodovia corta o município pernambucano de Mirandiba, uma família sertaneja improvisa abrigo com lona junto à placa indicativa de lombada. O lugar é estratégico. Obrigados a reduzir a velocidade por causa da saliência, os ocupantes dos veículos que passam não têm como se esquivar da cena. Magros, esquálidos, quase desfalecidos, adultos e crianças exibem cartazes improvisados. O pequeno letreiro tem o impacto de um soco no estômago: fome.
Motoristas de caminhões com placas de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, que passam carregados de produtos a cada meia hora, deixam cair moedas de R$ 0,10 a cédulas de R$ 1. Os pés, descalços, renovam o ânimo para enfrentar o asfalto fervente a cata das esmolas salvadoras.
O relato é atual e verídico. Talvez, sirva como retrato fiel da desigualdade regional no país. Mais da metade dos pobres brasileiros está no Nordeste, segundo os números recentes do IBGE. Uma população de 47,7 milhões de pessoas, com um Produto Interno Bruto de US$ 104,7 bilhões. O Sudeste possui 72,1 milhões habitantes e um PIB de US$ 426,3 bilhões. A diferença de renda per capita entre as regiões explicita o abismo existente – US$ 2.237 contra US$ 6.704.
A pergunta a ser feita é: precisa ser assim? A pouco mais de 300 quilômetros de onde flagelados se estapeiam por esmola a resposta parece ser bem clara. O Vale do Rio São Francisco, situado na mesma região de semi-árido que Mirandiba, é um exemplo da potencialidade econômica nordestina.
Há 30 anos, havia pouca diferença entre as duas localidades. Suas economias se baseavam em culturas de subsistência e dependiam das chuvas que sempre foram raras e mal distribuídas na região. Hoje, o Vale do São Francisco possui uma economia próxima de R$ 1,2 bilhão por ano. Em 2001, exportou US$ 70 milhões em frutas – nada menos que um terço de toda a exportação brasileira de fruticultura do ano passado. Mirandiba, no entanto, continua pobre e famélica, com PIB de US$ 11 milhões.
Mas o que aconteceu ali nesses 30 anos? Um estudo da Divisão de Planejamento da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) responde à questão. “Nas últimas três décadas, não se registra nenhum fenômeno sócio-econômico capaz de explicar as citadas transformações senão aqueles decorrentes dos benefícios diretos e das externalidades da agricultura irrigada”, atesta nota técnica assinada pelo pesquisador Zacarias Lourenço Vaz Ribeiro Filho.
A afirmação não é à toa. O Vale do São Francisco está inserido no coração do semi-árido brasileiro, entre os estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco. São 640 mil quilômetros quadrados, dos quais o potencial irrigável é estimado em 1,5 milhão de hectares. Destes, apenas 330 mil hectares do perímetro estão efetivamente irrigados. Todavia, já foram suficientes para mudar a cara da região.
Tudo começou com uma decisão política. Durante os debates da Constituição de 1948, foi criada a Comissão do Vale do São Francisco, com recursos que equivaliam a 1% de toda renda tributária da União. A meta era erradicar a pobreza de uma das regiões mais miseráveis do país em 20 anos. “O órgão fazia de tudo: cais de contenção de cheia, aeroportos, escolas, pavimentação, posto de saúde… Era a presença do governo federal na região.
Na década de 1960, estudos da Sudene feitos em conjunto com a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) identificaram a potencialidade da agricultura irrigada. Em 1967, a comissão foi substituída pela Suvale (Superintendência do Vale do São Francisco), já direcionada para a irrigação. Em 1975, transformou-se em Codevasf e consolidou o projeto”, resume o gerente técnico do órgão, Flávio Cabral, que acompanhou de perto essa história nos últimos 25 anos.
Desde então, Codevasf implantou 23 projetos de irrigação, compreendendo 110 mil hectares. Foram abertos canais para conduzir a água do rio São Francisco e construída toda a infra-estrutura necessária à produção. Pelo modelo atual, a área irrigada é dividida em lotes de até seis hectares para os pequenos produtores e de 200 hectares para os empresários. A ocupação é feita através de licitação pública. Os vencedores têm que ressarcir o investimento oficial em até 22 anos, pagando também pelo uso da água.
Parcerias
Uma das conseqüências imediatas da intervenção organizada do Poder Público foi a atração de investidores privados, responsáveis, atualmente, pela irrigação de outros 220 mil hectares com capital próprio ou financiado. O resultado é que o Vale do São Francisco se tornou, por exemplo, no segundo maior exportador de manga do mundo, perdendo apenas para o México. “Estamos fechando os números de 2004, foram cerca de 140 mil toneladas de manga vendidas para Estados Unidos, Canadá e Europa. Isto equivale a US$ 45 milhões”, comenta o empresário Aristeu Chaves, um dos maiores da região e membro da Associação dos Produtores e Exportadores do Vale do São Francisco, a Vale Export.
Outro carro-chefe do Vale é a uva (sim, dá uva no sertão!). A modalidade sem semente, desenvolvida para a região por meio de estudos Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa), é a mais nova vedete. Para se ter uma idéia, em 2001, a Vale Export contabilizou 19,6 mil toneladas de uva comercializadas para o exterior (90% para a Europa). Os números oficiais de 2002 ainda não saíram, mas a estimativa supera em 50% o exercício anterior.