São Paulo – A placa em frente ao número 403 da avenida Luciano Gualberto, na cidade de São Paulo, indica que ali fica o ensino de Letras na Universidade de São Paulo (USP). Escadaria para subir, grupinhos de estudantes pelos quais passar, corredores a percorrer, e se chega a um ambiente onde a conversa pode ser em idioma árabe e os assuntos podem ser os livros e os autores do Oriente Médio.
O Departamento de Letras Orientais (DLO) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP abriga um dos espaços acadêmicos mais respeitados em estudos árabes do Brasil. O árabe é tema de curso na graduação – bacharelado e bacharelado com licenciatura – e da pós-graduação, no mestrado e no doutorado.
O ambiente tem a típica tranquilidade das universidades, mas num dia convencional, perto das portas cor amarela das salas de aula do prédio de Letras é possível ouvir as vozes de professores e estudantes soletrando em árabe – e também em armênio, japonês, chinês, hebraico, russo e coreano. Esses são os idiomas oferecidos na graduação do Departamento de Letras Orientais, chefiado por uma libanesa que vive no Brasil: Safa Jubran.
O árabe está por todos os lados: nos avisos do mural – que traz desde o horário das aulas até uma entrevista em jornal com uma autoridade no idioma, nos livros expostos nas galerias de vidro dos corredores, nas ofertas da biblioteca, nas conversas dos alunos, e principalmente na Sala 25, de onde Jubran comanda a área.
A entrevista no mural, já antiga, é com o egípcio que foi um dos primeiros professores de árabe no curso da USP, na década de 1960, e ajudou a desenvolver esse ensino na instituição: Helmi Nasr. Ele foi enviado do Egito especialmente com essa missão e no Brasil também traduziu o Alcorão, entre outras obras, e fez parte da diretoria da Câmara de Comércio Árabe Brasileira. Há cerca de três anos, já com 93 anos, Nasr retornou ao seu país de origem.
Atualmente, a cada ano, 20 novos estudantes são recebidos para a graduação. Enquanto eles entram no mundo da língua, da literatura, da filosofia e da história árabe, outros já formados se dedicam a pesquisar um universo similar, mas mais avançado, na pós-graduação. Atualmente são cerca de 30 alunos no mestrado e doutorado.
Quem se aventura pela graduação em árabe pode se dedicar ao árabe e ao português, terminando o curso com dupla habilitação, ou apenas ao árabe. O primeiro ano do curso de Letras é básico, igual para todos os que ingressam pelo vestibular, mas ao final dele o aluno precisa escolher a língua que estudará. O acesso se dá segundo as notas.
O curso não ensina apenas o idioma, mas também literatura, história e filosofia. O estudo da língua é aprofundado. “Não é uma aula de língua, um cursinho. Aqui você tem a língua como objeto de estudo para ser aprendida, dominada, pesquisada”, explica Safa Jubran. Os alunos aprendem o árabe padrão (chamado no passado de clássico) e são apresentados a dois grandes grupos dialetais, o chamy (da região do Levante) e o egípcio.
Jubran conta que o ensino da literatura abrange desde textos clássicos, como o Alcorão, da Idade Média, As Mil e Uma Noites, e outros, até a literatura e a poesia modernas. Em função da amplitude do mundo árabe, porém, não é possível se deter um semestre inteiro para estudar apenas um autor. A região engloba 22 países.
O responsável pelo ensino de filosofia é Miguel Attie Filho, e de história é Arlene Clemesha. A língua e a literatura são lecionadas por Safa Jubran, Mona Hawi, Mamede Jarouche, Michel Sleiman e Paulo Farah. Grande parte do time se formou dentro da USP e é referência em seu campo de atuação, caso de Jarouche, tradutor para o português de As Mil e Uma Noites, e Clemesha, chamada pela imprensa a falar quando o tema é história do Oriente Médio.
Jubran conta que o estudante que procura o curso de árabe é bem consciente da sua escolha e a faz normalmente atraído por elementos da cultura como literatura, cinema e comidas da região. “É um jovem que quer aprender algo diferente, que acha que faz a diferença aprendendo outra língua que não seja o inglês”, conta. São poucos os alunos que têm ascendência árabe, segundo Jubran. “Nessa turma nova, vi dois nomes de origem árabe”, diz.
A paulista Vitória Trombetta, 21 anos, está no quarto ano da graduação. Ela não é de família árabe e conta que se apaixonou pela língua após começar a estudar. “Eu queria aproveitar o fato de estar na USP e sair com um idioma completamente diferente, que vai ser um diferencial no meu currículo”, contou à ANBA, detalhando ainda sua curiosidade em descobrir um mundo sobre o qual pouco se fala. Vitória dá aulas de português para refugiados árabes e tem planos de seguir a carreira de tradutora e intérprete, além de fazer pós na USP.
Mais saber
Abrigar uma pós-graduação voltada para a área faz da USP também um lugar de desenvolvimento do pensamento e da pesquisa a respeito dos árabes e seu idioma. Do estudo na instituição saem novas reflexões sobre linguística, língua, tradução, literatura, entre outros. A mestranda Jemima Alves, por exemplo, está estudando a obra de uma escritora libanesa. Felipe Benjamin Francisco pesquisa no doutorado a dialetologia de uma região marroquina. Christina Stephano de Queiroz fez seu doutorado sobre um poeta brasileiro de ascendência libanesa.
Jubran se entusiasma ao falar das pesquisas da pós e contar que muitos dos alunos estudam árabe na USP desde a graduação. Ela espera que sejam eles os substitutos, no futuro, do quadro atual de professores de árabe na universidade. Jubran conta que alguns anos atrás, após os atentados de 11 de setembro de 2001, as pessoas procuravam a pós interessadas principalmente na imagem do árabe na mídia e eram de áreas como história e comunicação. Depois passaram a chegar os interessados também em literatura e linguística.
Os que estudam
Entre os ávidos por literatura está a estudante Jemima. Com 29 anos, ela fez a graduação em Letras – Árabe na USP e atualmente faz o mestrado sobre o livro “Innah London Ya Azizi”, da escritora libanesa Hanan al-Shaykh. “Ela vivia há 20 anos na Inglaterra e decidiu escrever um romance sobre a capital britânica em língua árabe”, afirmou Jemima à ANBA. A paulistana vai traduzir trechos do romance para o português e discutir a tradução do livro para o inglês, idioma no qual é chamado de “Only in London”.
Felipe, 29 anos, está fazendo o doutorado pelo Departamento de Letras Orientais da USP e atualmente mora na Espanha, com uma bolsa de doutorado sanduíche – termo usado quando parte da pesquisa é feita em outra instituição. Ele fez o mestrado em árabe na USP e desde a época estuda o árabe marroquino. No doutorado resolveu pesquisar a dialetologia árabe da região marroquina de Essaouira. “Desde o século 19 não temos nenhum estudo do árabe falado na cidade de Essaouira e entornos”, contou.
O estudante também não tem origem árabe, mas conta que foi criado no bairro do Horto Florestal, na capital paulista, no qual convivia muito com árabes e descendentes. “Sempre quis ensinar inglês, mas depois que entrei no árabe (da USP) descobri um mundo à parte”, afirma Felipe. Ele já trabalhou como professor do idioma, com tradução e interpretação, inclusive de forma voluntária com refugiados. Quando voltar ao Brasil para terminar o doutorado, em setembro deste ano, a sua intenção é seguir lecionando. Ele ainda pretende se tornar pesquisador no ensino superior e atuar como intérprete voluntário em organizações voltadas aos refugiados.
Christina, 37 anos, fez faculdade de Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e mestrado na Universidade de Barcelona. O doutorado, no entanto, foi concluído no ano passado, na USP. O trabalho foi uma biografia intelectual do poeta brasileiro de ascendência libanesa Jamil Almansur Haddad. “Meu interesse por esses autores imigrantes ou descendentes de imigrantes começou no mestrado”, diz. O tema do mestrado dela foi um estudo comparativo do trabalho do escritor brasileiro Alberto Mussa e do libanês Elias Khoury.
Muitos destes estudantes que passaram pela graduação ou pós-graduação em árabe na USP tiveram experiências no mundo árabe. Christina viajou a turismo para a região, mas por períodos longos e para três países: Líbano, Síria e Marrocos. Felipe estudou no Marrocos durante o mestrado. Jemima estudou no Marrocos no final da graduação e em Omã no ano passado. Vitória, que está no final da graduação, também quer uma experiência em Omã.
Há trabalho
A chefe do Departamento de Letras Orientais afirma que atualmente há mercado de trabalho para quem estuda árabe no Brasil. Ela cita a abertura comercial que ocorreu do Brasil para os países árabes de cerca dez anos para cá, gerando demanda para a tradução de rótulos e embalagens de produtos para exportação, o interesse maior das editoras por traduções de obras árabes e as escolas que ensinam árabe. A própria Safa Jubran fez traduções de materiais para grandes empresas em árabe. “Agora posso enviar para um aluno, já tem gente preparada”, comemora.
Para entrar no curso de graduação em Letras com habilitação em árabe é preciso passar pelo vestibular. Ao final do primeiro ano, o aluno terá a chance de optar pelo idioma, segundo um ranqueamento das notas obtidas nessa fase básica. A graduação é oferecida no turno matutino. Jubran acredita que desta maneira o curso atrai um perfil de aluno com mais tempo para se dedicar às pesquisas.
Para entrar no mestrado e no doutorado em árabe há prova eliminatória de língua estrangeira, depois uma prova escrita de conhecimentos gerais. O processo final é uma banca com apresentação do projeto. Há seleção para bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (Capes), mas elas não abrangem o número total de estudantes. Os alunos precisam cursar algumas disciplinas na pós, além de realizar a pesquisa.
O programa de pós-graduação se chama Estudos Judaicos e Árabes, mas está tramitando a mudança de nomenclatura para que ele abranja também outras áreas e passe a se chamar Línguas Estrangeiras e Tradução, com a sigla LATRAS. As linhas de pesquisas voltadas para o árabe, porém, seguirão existindo da mesma maneira.
Além dos idiomas ensinados na graduação, o Departamento de Letras Orientais também oferece cursos extracurriculares para a comunidade, de turco, checo, húngaro e hindi.