Giuliana Napolitano
São Paulo – Em menos de duas décadas a produção agrícola brasileira cresceu espantosos 111% e atingiu a marca de 123 milhões de toneladas no ano passado. Mas, se o país tem conhecimento tecnológico e espaço físico para produzir uma das maiores safras do mundo, a infra-estrutura de transportes – especialmente a portuária – pode atrapalhar e até mesmo frear a previsão feita por analistas de que país poderá se tornar o principal exportador mundial do segmento em alguns anos. Mesmo a meta global de exportações do país pode ficar comprometida.
Para especialistas consultados pela ANBA, a falta de um sistema logístico adequado pode fazer com que os produtores deixem de plantar. "Os portos brasileiros não têm capacidade para escoar com eficiência a safra", afirmou o analista especializado em agronegócio da consultoria Global Invest, Paulo Rossetti. "Isso desestimula a produtor, porque ele perde dinheiro com essa ineficiência. A infra-estrutura hoje limita o potencial do Brasil de se tornar um grande produtor de grãos", acrescentou.
Exemplo recente é o caso do milho. Os estoques mundiais do grão despencaram para um dos menores níveis da história. Enquanto isso, o Brasil teve safra recorde em 2003 e os primeiros números deste ano também superaram as expectativas. Os produtores, no entanto, correm o risco de não conseguir embarcar toda a colheita prevista por falta de espaço nos portos.
"Agora já estamos vendo alguns problemas, mas a partir de maio e junho, quando entrar a safra de soja, a situação vai ficar no mínimo curiosa", declarou Rossetti.
O embarque da soja também não será fácil. Apesar de a previsão da safra da commodity neste ano ter caído de cerca de 60 milhões de toneladas para algo em torno de 55 milhões de toneladas – em razão de quebras ocorridas em alguns estados -, "o volume ainda é muito grande para o Brasil", acredita o analista.
O caos não é exclusividade do agronegócio. No final de março, montadoras reclamavam da falta de estrutura do Porto de Santos para a exportação de veículos. O porto consegue embarcar 120 mil automóveis por ano, mas em 2003 recebeu quase 245 mil e a previsão para este ano é de 280 mil. Para 2005, está programado o acréscimo de mais 100 mil unidades. Isso porque a fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo (SP) passará a produzir o Fox, que será exportado para o mercado europeu.
Em visita ao Porto de Paranaguá (PR), o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, admitiu que a "estrutura brasileira não está preparada para recordes de safra e para o crescimento de exportação de cargas gerais". E disse que estão sendo adotadas "medidas emergenciais". Para empresários, operadores de portos e analistas, porém, essas medidas tendem a ficar bem abaixo do necessário.
"Terceira categoria"
Uma das razões apontadas para a decadência do sistema é a falta de investimentos. Relatório divulgado pela Global Invest afirma que, de acordo com estimativas mundiais, "para que um país obtenha um nível adequado de infra-estrutura é necessário investir no mínimo 2% do Produto Interno Bruto (PIB) por ano no setor". "Mas, no caso do Brasil, é preciso pelo menos 4% do PIB, dadas as condições precárias do sistema de transporte", ressalta Rossetti, que escreveu o relatório. Só que o país investe apenas 0,2% do PIB na área, segundo ele.
Além de o total ser baixo, boa parte dos recursos continua indo para o segmento de rodovias. Sobra pouco para outras modalidades. "No Brasil, o destaque sempre é dado ao transporte rodoviário. Os portos são vistos como transporte de terceira categoria", afirma o professor Hildebrando de Araújo Goes Filho, coordenador da disciplina de planejamento portuário e chefe do Departamento de Recursos Hídricos e Meio-Ambiente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os investimentos, dizem os especialistas, são necessários para modernizar os portos, adequá-los aos padrões internacionais, agilizar e dar mais segurança ao transporte das cargas.
Privatizações
Alguma coisa nesse sentido começou a ser feita há quase sete anos, em 1997, quando o governo começou a abrir à iniciativa privada a operação dos portos – a administração, que é feita por companhias de docas ou autarquias continua nas mãos do Estado, como acontece na maioria dos países.
De lá para cá, houve avanços. "As tarifas portuárias caíram entre 50% e 70% em dólar", reconhece um estudo feito em 2002 pelo Banco Mundial. Segundo a Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABPT), que reúne empresários do setor, antes da privatização a movimentação de um contêiner chegava a custar US$ 500. "Hoje, varia de US$ 100 a US$ 170", declarou o presidente da entidade, Wilen Manteli.
Manteli aponta ainda a diminuição do tempo das operações. "A movimentação de contêineres, que era feita a uma média de 10 a 11 por hora antes de 1997, hoje está em cerca de 30 por hora. Em alguns casos, chega a até 40", disse. "Além disso, a espera dos navios para descarregar, que demorava dias, caiu para horas", completou.
Sem direção
A percepção de melhora é praticamente unânime. Mas também há consenso sobre o fato de que "ainda é preciso avançar". "Falta tudo nos portos: de treinamento a tecnologia", dispara o professor da UFRJ. Além de mais investimentos, especialistas e entidades portuárias pedem que seja criada uma política organizada para o setor.
"Falta uma política portuária de fato", ataca Goes Filho. O próprio governo concorda. "Realmente não havia planejamento", disse à ANBA o diretor do Departamento de Portos da Secretaria de Transportes Aquaviários do Ministério dos Transportes, Paulo de Tarso. "Havia uma forma de atuar, mas não um planejamento", acrescentou.
Tarso reforçou, no entanto, que "agora estamos trabalhando para criar uma política para o setor". "Estamos reunindo empresários, trabalhadores e representantes do governo para discutir os problemas".
Mas o volume de recursos destinados ao segmento não chega nem perto do desejado.
O orçamento do ministério prevê investimentos de R$ 2,5 bilhões neste ano – 0,17% do PIB nacional. Além disso, portos e hidrovias ficam com a menor fatia: R$ 230 milhões e R$ 131 milhões, respectivamente, o que, somado, representa pouco mais de 14% dos recursos totais do orçamento.
Parcerias internacionais
Nem teria como chegar, acredita Goes Filho. Para ele, nem o governo, nem empresas nacionais têm como arcar com os custos que seriam necessários para modernizar os portos brasileiros e colocá-los em pé de igualdade com os principais portos internacionais.
Nas contas do professor, apenas para trocar os equipamentos dos portos seria necessário cerca US$ 1 bilhão. "Além disso, também é preciso investir em treinamento, porque há novas tecnologias nos portos. Os funcionários não são mais só carregadores, é preciso acabar com essa imagem. Há engenheiros operando contêineres", diz.
Segundo ele, Cingapura, que abriga um dos principais portos do mundo, mantém uma escola para treinar funcionários. "Não há nada assim no Brasil. A tecnologia aqui está muito no começo."
Para fazer frente a esses gastos, o professor defende que o governo estabeleça parcerias com empresas nternacionais especializadas em operação de portos, como a Hamburg Sud. "Essas empresas não vieram na época da privatização porque as regras não eram claras, assim como também não era transparente a política de investimentos do governo."
Na avaliação de Goes Filho, só com essas parcerias o país conseguirá ampliar a capacidade dos portos – cada vez mais requisitada toda vez em que se fala de aumento de exportações. Ele compara a movimentação de contêineres. Segundo o professor, o Brasil consegue transportar hoje em torno de 6 milhões de contêineres por ano. Os maiores portos do mundo – como os de Cingapura e Hong Kong – operam 18 milhões de contêineres.
"A decisão sobre portos é fundamental no país. Hoje, falta eficiência, falta capacidade. Isso limita e encarece a movimentação de cargas. Por conseqüência, encarece as exportações. Perde-se muito dinheiro com sistemas arcaicos. O governo precisa ter uma visão estratégica que nunca teve", conclui.